A história muda quando ninguém repara. Poderia ser um aforismo. Ou a lei científica que Marx (1818-1883) não profetizou. Quem diria que uma mera questão fiscal levaria as colônias americanas a lutarem pela independência contra a Inglaterra do século 18? E quem diria que um gesto de autoimolação na Tunísia daria início às “revoltas árabes” do século 21? Repito: a história muda quando ninguém repara. Domingo passado, a Europa teve duas eleições “menores”: na Alemanha, eleições regionais; na França, eleições locais. E os resultados das duas são um bom presságio sobre o futuro da Europa. Futuro próximo, não distante.
Na Alemanha, os democratas-cristãos de Angela Merkel perderam a riquíssima região de Baden-Württemberg para os verdes e sociais-democratas. Isso não é uma derrota. É uma hecatombe: os democratas-cristãos governavam o reduto há seis décadas. Causa principal do “débâcle”? Sim, os alemães não ficaram convencidos com a inusitada postura antienergia nuclear de Merkel, um oportunismo eleitoralista depois da tragédia japonesa. Mas o problema é mais fundo e lida com a forma como a Sra. Merkel tem socorrido, timidamente que seja, os países endividados da periferia da Europa. Os eleitores alemães não querem pagar as contas de estranhos. Esperam-se mudanças drásticas da chanceler alemã.
Na França, nas eleições locais, a Frente Nacional consegue um terceiro lugar honroso. E as pesquisas avisam que Marine Le Pen, líder do partido e filha de Jean-Marie Le Pen, poderia ter mais votos do que Nicolas Sarkozy na eleição presidencial. Espanto? Nenhum. Lembro que, nas presidenciais de 2002, Le Pen já disputara um segundo turno com Jacques Chirac. Foi um aviso. Agora, chegou a confirmação: a extrema-direita francesa cavalga a onda xenófoba (leia-se: anti-islâmica) e os franceses gostam disso.
Duas eleições, dois sinais: a Europa de hoje tem problemas sérios. O primeiro é a crise dos países endividados que pode destroçar o euro e a própria União Europeia. O segundo é o crescimento da xenofobia anti-islâmica. Poderá o fascismo regressar à Europa? Ian Kershaw diz que não. Kershaw, historiador incontornável do nazismo, escreveu recentemente na revista The National Interest que a Europa de 2011 não tem os problemas da Europa da década de 1930.
Nesses tempos sombrios, os europeus viviam com a herança da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), um conflito que dizimara 10 milhões de vidas e, com elas, a própria confiança no ideal democrático. Se juntarmos a isso a revolução bolchevique de 1917, que aterrorizou os Estados com a “ameaça vermelha”, e a grande depressão iniciada em 1929, vemos um mundo pronto para o massacre. Em 2011, o cenário é mais bondoso. Exceto, avisa Kershaw, se duas hipóteses se confirmarem no horizonte.
Para começar, uma nova crise financeira que poderia arrasar de vez com as frágeis economias do continente. A agonia do capitalismo seria também um réquiem pela democracia liberal que lhe é indissociável. E, para acabar, um atentado terrorista com armas de destruição maciça numa qualquer capital europeia, com assinatura de fundamentalistas islâmicos, que faria transbordar a tolerância multiculturalista dos europeus.
Deixemos de lado essa última hipótese. Mais por razões caridosas que realistas: se o Irã atingir capacidade bélica nuclear e se as “revoltas árabes” determinarem o triunfo dos movimentos islamitas radicais, não ponho as mãos no fogo pela segurança da Europa. Mais tangível, porém, é a desagregação do euro e, quem sabe, da União Europeia.
O filme é conhecido: com a crise financeira de 2008, os Estados europeus endividaram-se brutalmente para socorrer suas economias. Alguns voltaram à tona. Outros ficaram no fundo e os pacotes de resgate impostos por Bruxelas e pelo FMI à Grécia e à Irlanda, com Portugal aguardando na fila, prometem mantê-los por lá num ciclo infinito de austeridade econômica e mais endividamento. Haveria forma de sair desse processo? Talvez: se a União Europeia desse um passo em frente e se assumisse como uma real união política e federal, dispondo de mecanismos de transferência financeira entre Estados e emitindo dívida conjunta para os membros do euro.
Mas o eleitorado dos países excedentários do norte, como o da Alemanha, não está disponível para bancar a preguiça e a irresponsabilidade orçamental dos vizinhos do sul. E quem os pode censurar? Eu, não. E desconfio que a Sra. Merkel, daqui para a frente, será da mesma opinião. O futuro promete.
(João Pereira Coutinho, Folha de S. Paulo, 29 de março de 2011)
Nota Michelson Borges: Impressionante é notar como “analistas seculares” estão percebendo coisas que muitos cristãos ignoram. Se isso não são as pedras clamando, o que é, então? Gostei desta frase: “A história muda quando ninguém repara.” Graças a Deus, as profecias nos ajudam não a reparar, mas a antecipar esses fatos. Como escreveu meu amigo Marco Dourado, “parece que o barro dos pés [da estátua de Daniel 2] não vai conseguir sustentar por muito tempo o peso da estátua.” Se o futuro promete? Ô, se promete!