Por François-Alexandre Roy, no Asia Times Online
Quem assista às televisões e leia os jornais da mídia ocidental, só
conhecerá a narrativa, repetida diariamente, segundo a qual a Síria
estaria envolvida num levante democrático que seria extensão da
Primavera Árabe. A verdadeira história é absolutamente outra.
Os sírios que exigem reformas ditas democráticas não são maioria
significativa no país, como eram na Tunísia ou no Egito. Além disso, nem
todos os “combatentes da liberdade”, entre os quais o Exército Sírio
Livre, são sírios.
EUA e Al-Qaida: dessa vez, são aliados
Houve muitas notícias segundo as quais as forças da “oposição síria”
seriam um cadinho de diferentes ideologias, de curdos separatistas a
membros da Al-Qaida. Sabe-se que há soldados da Al-Qaida entre as forças
de oposição na Síria, como há também mercenários vindos diretamente da
“Revolução Líbia” – outro bom exemplo de golpe de estado tratado como se
fosse parte de alguma Primavera Árabe, pela imprensa-empresa ocidental.
No início no levante na Síria, Ayman Al-Zawahiri, líder máximo da
Al-Qaida, convocou diretamente combatentes da Al-Qaida e mercenários
sunitas, para juntar-se às forças de oposição na Síria. Assim sendo, é
bem evidentemente claro que EUA, Al-Qaida, países do Conselho de
Cooperação do Golfo (CCG) e a Organização do Tratado do Atlântico Norte
(Otan) estão hoje todos do mesmo lado, aliados, no conflito sírio –
tentando um golpe de estado na Síria, sem qualquer preocupação com o
futuro da Síria, depois de derrubado o governo de Bashar al-Assad.
O jogo da Turquia
O Conselho Nacional Sírio e o Exército Sírio Livre tampouco estão
integrados, e nem sempre lutam do mesmo lado. Contudo, além de derrubar o
estado policial de Assad, lhes caberia traçar algum plano coerente para
o futuro da Síria pós-revolucionária. Mas o Conselho Nacional Sírio e o
Exército Sírio Livre têm um importante traço comum: ambos são
pesadamente apoiados pela Turquia, que conta com vir a ocupar lugar de
mais destaque na região.
Abdulbaset Sieda, o presidente sírio-curdo do Conselho Nacional Sírio,
foi acusado por outros grupos curdos de só representar a agenda do
governo turco – inimigo de muito tempo das populações curdas na região. O
Quartel-General e os campos de treinamento do Exército Sírio Livre são
localizados na província de Hatay, sul da Turquia; foram ali instalados
por forças especiais do Catar. Através da Turquia, o Exército Sírio
Livre também recebe armas (que foram usadas na Líbia); e, da Otan,
recebe equipamento de tecnologia avançada, para comunicações.
Já há algum tempo, a Turquia trabalha para ampliar seu espaço de ação e
influência no Oriente Médio. Com uma “revolução democrática” acontecendo
junto à sua fronteira leste, os turcos logo procuraram estimular a
revolta, na esperança de vir a construir laços fortes com quem vier a
governar a Síria, seja governo democrático ou ditador novo. Bom meio
pelo qual a Turquia pode começar a construir laços com o futuro governo
na Síria é apoiar a causa da “mudança de regime” desde o início,
inscrevendo-se entre as forças que tenham ajudado a derrubar Assad.
Dia 22 de junho, a força aérea síria abateu um jato de combate F-4
turco, que, como diz a Síria, invadiu águas territoriais sírias. Além de
reforço na presença militar turca na fronteira leste com a Síria, nada
mais resultará desse incidente, porque a Turquia errou ao invadir águas
territoriais sírias.
Mas, ao derrubar o Phantom turco, o exército sírio mostrou que suas
capacidades de defesa antiaérea estão instaladas e operantes. É o que
basta para tornar impraticável qualquer coisa semelhante à tal “zona
aérea de exclusão” que abriu caminho para o golpe contra a Líbia. É
possível que muitos ainda insistam em outras explicações para o
“incidente” com o F-4 turco; nenhum jornal ou noticiário de televisão
ocidental noticiará o fato: os turcos foram apanhados em operação de
espionagem, tentando recolher informação sobre as defesas antiaéreas
sírias; é sinal claro de que há planos para outros tipos de agressão à
Síria.
A empresa-imprensa ocidental
O modo como a empresa-imprensa ocidental apresenta os eventos que se
desenrolam na Síria é o melhor indicador de que há um golpe em curso
contra a Síria, chamado sempre “mudança de regime”. O “analista”, o
“comentarista” ou o “jornalista” sempre só vê metade do fato, e sempre a
metade que mais ajude a justificar e promover a agenda de “mudança de
regime” da grotesca coalizão de forças que, hoje, está atacando a Síria:
EUA e Turquia (dentro da Otan), aliados da Al-Qaida e do Conselho de
Cooperação do Golfo.
Basta analisar o modo como a empresa-imprensa ocidental está cobrindo os
desenvolvimentos do conflito na Síria, para ter certeza de que o que
está em andamento na Síria nada tem a ver com Primavera Árabe e já é
guerra civil provocada e “arrastada” para dentro do território sírio.
Absolutamente nenhum jornal, jornalista, especialista ou autoridade
entrevistada nos veículos de mídia faz qualquer referência ao povo sírio
ou a demandas dos próprios sírios. Todas as “matérias” e “noticiários”
são carregados de imagens de bombardeios e matanças, sempre
imediatamente declaradas ações criminosas do regime Assad. Mas sem
qualquer tipo de prova.
O mais recente massacre, acontecido em Hula, é bom exemplo do tipo de
ação de guerra operado por jornais e jornalistas, contra a Síria: sem
qualquer tipo de confirmação ou prova, as imagens que chegaram ao
ocidente foram imediatamente identificadas como efeito da ação das
forças de Assad.
A BBC chegou a exibir imagem de centenas de cadáveres envolvidos em
mortalhas brancas, identificados como vítimas do massacre em Hula. Não.
Era foto feita no Iraque, em 2003, pelo fotógrafo Marco di Lauro...
À guisa de legenda, em letras convenientemente microscópicas, a BBC
notificava que: “Essa imagem – que não pôde ser verificada – parece
mostrar cadáveres de crianças mortas no massacre de Hula, à espera de
serem enterrados”. A história espalhou-se pelo mundo, como argumento que
comprovaria a crueldade do regime sírio, induzindo a opinião pública a
aprovar alguma espécie de intervenção militar, para finalidades
“humanitárias”, contra a Síria.
Pouco depois, o autor da fotografia manifestou-se, o “jornalismo” foi
denunciado como fraude, e afinal noticiou-se que os reais autores do
massacre haviam sido membros do Exército Sírio Livre fantasiados de
shabiha (grupos de mercenários); e os mortos eram manifestantes sírios
pró-Assad, cujas manifestações não recebem qualquer atenção dos
“jornalistas”, jornais, comentaristas de televisão e colunistas e
receberam tratamento diferente: a correção não foi tão amplamente
divulgada quanto a notícia errada (ou propositalmente falsificada).
E onde se veem, no “jornalismo” das empresas de imprensa ocidental,
imagens dos protestos pacíficos? Não há notícias, porque não há qualquer
tipo de levante democrático ou Primavera Árabe na Síria, como dizem as
empresas de imprensa no ocidente. O que há na Síria é guerra civil, na
qual os “rebeldes” são “importados”, não representam qualquer tipo de
maioria da população e não estão absolutamente unidos sob qualquer tipo
de plataforma política; absolutamente não se sabe por que, afinal, tanto
lutam para derrubar o regime de Assad.
Mais provas disso se veem nos confrontos sectários que irromperam no
norte do Líbano. Toda e qualquer prova da guerra civil na Síria é
censurada pelas empresas de imprensa ocidentais, porque não ajudariam a
promover a causa do golpe contra Assad (“mudança de regime”). A opinião
pública tem de ser convencida de que o golpe não é golpe; que há “boas
razões” para uma “mudança de regime”.
Se o regime de Assad for afinal derrubado, será má notícia para o Irã e
para o Hezbolá. O Irã estará cercado por “postos avançados” dos EUA em
estados hospedeiros, a partir dos quais os EUA poderão, afinal, começar a
atacar o regime iraniano: é o sonho, há vários anos, do complexo
militar-midiático-industrial representado no Congresso dos EUA pelos
neoconservadores dos dois principais partidos.
Mas, se houver ataque militar pelos exércitos dos EUA/Otan para
“libertar” o povo sírio, como “libertaram” o povo líbio ao preço de
destruir a Líbia, acontecerá na Síria o que não aconteceu nem na Líbia,
pelo menos até agora: guerra civil sem prazo para acabar, mais sangrenta
do que se viu até agora. E que permanecerá absolutamente ocultada pelos
jornais, “jornalistas” e empresas de mídia do ocidente.
Fonte: Asia Times Online (retirado do sítio O Vermelho)
Nota O Tempo Final: algum tempo atrás sugeri que as mudanças politico-sociais no norte de África e Médio Oriente eram muito mais do que apenas isso, mais do que um assunto interno dessas nações. As implicações citadas nos dois últimos parágrafos do texto são evidentes.
Não se de esqueça que estamos a apenas quatro meses de eleições presidenciais nos EUA. E Obama terá de saber jogar muito bem com todas as peças do tabuleiro...