sexta-feira, 7 de junho de 2013

Voltamos à década de 80

No Brasil, os sinais já eram claros. A criminalidade está em alta, a inflação voltou, Lulu Santos e Renato Russo estão na moda, e o PMDB manda no governo. Depois de muita onda sobre o potencial do século XXI, parece que o Brasil voltou à década de 80. O curioso é ver que o fenômeno já existe também no exterior. Como nos tempos de Margaret Thatcher, o Reino Unido tem um governo conservador hostil ao resto da Europa. A França conta novamente com um presidente socialista, e a Rússia é praticamente uma nação de partido único, como nos tempos soviéticos. Tem mais: o Japão é novamente visto como potência relevante, a Argentina como um país caótico, e o Líbano pode repetir a guerra civil que viveu de 1975 a 1990. Até a Turquia, que parecia uma referência de estabilidade no Oriente Médio, começa a enfrentar um período de turbulência política que, de certa forma, lembra os excessos dos militares de três décadas atrás. Para onde se olha, é década de 80 que não acaba mais.

Talvez a maior preocupação nesta volta ao passado seja o possível retorno das “guerras de procuração” – do inglês “proxy wars” –, típicas da Guerra Fria. No período depois da Segunda Guerra, Estados Unidos e União Soviética se enfrentaram indiretamente em diversos palcos de terceiros, como Vietnã, Coreia e Angola. Nos anos 1980, esse conflito manteve-se na América Latina, especialmente nas guerras civis de Nicarágua e El Salvador, que opuseram guerrilhas marxistas apoiadas por Moscou contra ditaduras ou grupos armados financiados pela CIA. Esse e muitos outros fantasmas de 30 anos atrás voltam com força na guerra civil da Síria. O conflito, que começou com sírios sunitas rebeldes de um lado contra sírios alauítas (xiitas) apoiadores do regime do outro, cada vez mais envolve interesses de outros países. Já há libaneses do Hezbollah defendendo o ditador Bashar al-Assad, enquanto sunitas de várias nações, muitos ligados à al-Qaeda, tentam derrubá-lo. O risco maior, porém, é a chegada de europeus, russos, israelenses e até americanos. Como nos tempos da Guerra Fria, essas potências podem começar a se enfrentar indiretamente, na casa de um terceiro.

Europeus e americanos poderão repetir um dos mais graves efeitos colaterais do embate entre Washington e o bloco soviético nos anos 1980. Diante da necessidade de combater a ameaça militar vinda de Moscou, os Estados Unidos financiaram e treinaram os guerrilheiros islâmicos do Afeganistão para que combatessem a ocupação soviética, iniciada em 1979. O resultado, como todos sabemos, foi o surgimento do Talebã, muitos anos depois do fim da União Soviética. Na Síria, a União Europeia, com sua decisão de autorizar o envio de armas para a oposição a Bashar al-Assad, poderá acabar armando membros da al-Qaeda. Ninguém questiona a desumanidade do regime de Assad, em sua resposta aos protestos por democracia, no início de 2011. Trata-se, porém, de um regime secular, sem a presença de fanatismo religioso, ameaça que reside exatamente entre os rebeldes sírios. Como escreveu o jornalista britânico Simon Jenkins, no jornal The Guardian, a decisão da UE, de liberar o envio de armas aos rebeldes, pode levar à bizarra situação em que “forças especiais britânicas apareçam lutando na Síria ao lado da al-Qaeda”.

A Rússia vê cada vez mais a guerra civil síria como um jogo decisivo por influência geopolítica na região. Assad é um aliado russo não apenas por sua posição contrária à crescente influência americana, mas também por combater e conter o avanço islamista (de radicais islâmicos). Os americanos já sofreram nas mãos da al-Qaeda, particularmente no 11 de Setembro, mas os russos conhecem ainda mais de perto o potencial desestabilizador dessa ideologia. Movimentos islâmicos vindos das repúblicas russas da Chechênia e do Daguestão representam uma das maiores ameaças à integridade do Estado russo. Moscou fará de tudo para garantir a sobrevivência do regime de Assad e impedir que a Síria caia nas mãos de militantes fundamentalistas. É verdade que os radicais religiosos representam apenas parte dos rebeldes sírios, mas a Rússia, do alto de seu poderio militar e nuclear, não está disposta a correr nenhum risco que envolva fundamentalistas islâmicos.

Para completar o imbróglio típico dos anos 1980, não poderia faltar a participação de Israel. O governo israelense não gosta do regime de Assad, de quem é inimigo desde os tempos em que seu pai, Hafez al-Assad, morto em 2000, mandava em Damasco. A ditadura Assad, porém, era previsível e mantinha com Tel Aviv uma relação de ódio cordial havia muitos anos. A guerra civil síria mudou isso. Em princípio, os israelenses não teriam motivos para desejar a queda do secular Assad, especialmente diante do risco de ele ser substituído por islamistas. Existe, porém, um detalhe: a guerra na Síria cada vez mais atrai o movimento xiita libanês Hezbollah (Partido de Deus) – que os sunitas da al-Qaeda consideram Partido do Demônio. O Hezbollah entrou de cabeça na guerra ao lado de Assad – seu principal financiador, ao lado do Irã –, e Israel vê no enfraquecimento do regime uma chance de ouro de destruir o grupo xiita, um de seus inimigos mais imediatos. Israel teme os fundamentalistas sunitas, mas antes acredita ter uma chance de vencer os fundamentalistas xiitas, que os sunitas também buscam destruir.

Se todos os atores que podem entrar no conflito realmente lançarem-se sobre ele – Israel, Rússia, Reino Unido, França, Estados Unidos, Turquia etc –, o Líbano pode voltar aos tempos de guerra civil, a Síria pode se tornar base da al-Qaeda, e toda a região pode ser tomada por um conflito de grandes proporções e consequências imprevisíveis. Será a maior prova de que o mundo não aprendeu as lições de 30 anos atrás e não se importa em retornar, conscientemente, aos piores momentos da década de 80.

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