As igrejas cristãs são todas, sem exceção, parte da Babilônia mística (Ap 18). Os pioneiros adventistas esposavam essa convicção controversa. Ao surgir o movimento adventista sabatista, os conceitos mileritas serviram como ponto de partida. E os mileritas criam que a rejeição do anúncio do retorno de Jesus tornava a cristandade parte de Babilônia (Ap 14:8). Os adventistas sabatistas mantiveram a ideia, mesmo quando, alguns anos após o desapontamento, a principal corrente de ex-mileritas projetava o cumprimento dos três anjos (Ap 14) para o passado ou futuro.
Resumo da ópera: o adventismo já nasceu em um contexto polêmico. Por alguns anos, os pioneiros creram que o convite da graça se estendia não a todos, porém somente aos mileritas (a teoria da porta fechada). Por esse motivo, os sabatistas dirigiam sua pregação aos mileritas somente.
Por outro lado, isso não significa que ele se isolaram em uma espécie de bolha teológica. Os adventistas não ignoravam completamente autores e teologias cristãs; eles faziam teologia em constante diálogo com tais fontes, em muitos casos, usando uma abordagem polêmica (termo usado quando um corrente cristã reivindica suas doutrinas reagindo contra uma ou mais correntes). A teologia do nascente movimento adventista era sólida e solidamente inserida na tradição do século XIX, ou seja, pertencia a uma bem arraigada tradição protestante.
Os hinos cantados por eles consistiam em coletâneas de hinos evangélicos populares, com acréscimos de hinos mileritas, muitos dos quais soariam atualmente como parte de um culto das igrejas pentecostais. Aliás, houve muito empenho, especialmente por parte do casal White, para conter manifestações fanáticas nas primeiras décadas do adventismo. Demoraria até se estabelecer um conceito de adoração mais ou menos homogêneo, embora persistisse a reminiscência de manifestações carismáticas (como na década de 1960, 1980 e a partir do meio da década de 1990). Isso não significou total desprezo por hinos tradicionais cristãos, quando eles não divergissem da fé adventista.
Porém, em suas linhas mestras, o clima do adventismo das décadas iniciais pode ser descrito com a palavra desconstrução: às vezes é preciso destruir as paredes para reformar uma casa. Logo, doutrinas como a trindade, por exemplo, sofriam questionamento de autores adventistas, especialmente devido à compreensão tradicional equivocada do assunto. De fato, os adventistas chegaram a crer na trindade fazendo um caminho inverso, que os levou aos fundamentos bíblicos, a partir dos quais atingiram nova compreensão sobre o assunto. Eles não eram bisonhos como os anti-trinitarianos atuais, os quais alegam não poderem crer na doutrina por não haver a palavra “trindade” em si nas Escrituras; ignoram que teologia de fato não leva em conta somente as palavras, mas as ideias contidas. A chave utilizada pelos adventistas sabatistas para crer ou rejeitar algo, ou chegar a uma compreensão diferente sobre determinado tema era a investigação bíblica.
Nem tudo são flores, porém. O que aconteceu para o adventismo hoje possuir uma acentuada dessemelhança em relação à perspectiva de seus pioneiros? Certamente, as mudanças não vieram de uma vez, nem foram causadas por um fator isolado. Talvez seja mais apropriado apresentar uma série de causas para as mutações dos genes do adventismo, sem que isso implique chegar a uma conclusão dramática de que tudo esteja irremediavelmente perdido. Afinal, se Deus suscitou essa obra, é certo que Ele continua à frente dela.
Alguns fatores, como a negligencia em áreas teológicas em detrimento do cumprimento da missão (até hoje não temos uma eclesiologia adventista bem definida, por exemplo), além da busca por parte de ministros e obreiros por formação teológica em nível de pós-graduação em seminários evangélicos contribuíram para que se abandonasse a ênfase em doutrinas distintivas. O processo se tornou mais evidente a partir da década de 1950. Naquele contexto, o adventismo se esforçava para ser aceito no seio do evangelicalismo, o que se percebe com o lançamento do livro Question on Doctrines (QD).
Fruto do diálogo entre representantes do movimento adventista e líderes evangélicos, o trabalho procurava conciliar as doutrinas adventistas com a tradicional versão norte-americana do cristianismo. A contribuição positiva de QD foi quebrar o preconceito em relação ao adventismo, fazendo com que ele perdesse a pecha de seita, além de esclarecer as doutrinas adventistas em face de equívocos e distorções. A contribuição negativa se deu com uma significativa mudança de ênfase nos aspectos distintivos da mensagem adventista, levando quase à conclusão que ele não pretendia nada de revolucionário ou novo, mas que, no fundo, era mais uma igreja protestante norte-americana, com uma ou outra doutrina sui generis.
Nas décadas seguintes, o adventismo se aproximou ainda mais dos círculos evangélicos, acarretando a crise sobre justificação pela fé, envolvendo Robert Brinsmead, Desmond Ford e outros. Finalmente, as implicações desta crise inicial geraram outra ainda mais severa, quando Ford atacou a doutrina da purificação do santuário celestial. Claramente, alguns círculos adventistas desenvolveram tamanha afinidade com o pensamento evangélico que uma revisão doutrinária parecia iminente. Embora a denominação se fortalecesse com a publicação de importantes obras reivindicando a posição adventista em assuntos como santuário celestial e interpretação profética (publicados por uma comissão especial, cuja sigla em inglês é DARCOM), dissensões e divisão de pensamento se agravaram entre os adventistas.
Entre os motivos que acirraram os novos conflitos no seio do adventismo, podemos mencionar:
• Crescimento evangelístico desacompanhado de discipulado bíblico: os adventistas nasceram com uma missão. Organizaram-se em função de sua identidade, estabelecida a partir de um chamado profético (Ap 14:6-12). Entretanto, ao assimilar influências evangélicas, o evangelismo adventista foi deixando a compreensão profética para adotar uma versão popular de existencialismo cristão (até quando trata das profecias!). Essa pregação existencialista propõe uma visão reduzida da salvação, excluindo o estilo de vida, fator que sempre marcou a compreensão adventista. Aliado a isso, a falta de instrução bíblica acometeu o adventismo. Mesmo a produção de livros e revistas denominais (que na América do Sul é rigorosamente selecionada e apresenta uma qualidade superior em relação a outras realidades) passa longe de atingir um povo que não foi instruído a pensar biblicamente. Resultado: a denominação cresce exponencialmente em número de membros, todavia possui cada vez menos pessoas comprometidas com a missão e com os valores do estilo de vida adventista, o qual permanece questionado e relativizado;
• Falta de posicionamento claro em questões referentes à identidade adventista: professores adventistas de teologia com acentuadas tendências liberais continuam lecionando em seminários adventistas de referência, quer na Europa, quer nos EUA. Eles gozam de total liberdade, influenciando jovens ministros e, por meio deles, congregações ao redor do mundo. Livros de tendência progressista são publicados por editoras adventistas e embora representam apenas a opinião de seus autores, ganham aura de legitimidade, como se possuíssem um selo de aprovação denominacional (não à toa, vivencia-se hoje uma crise editorial nas editoras adventistas da América do Norte). Assim, o adventismo tem se multifacetado, se dividindo e se tornado lento no cumprimento da missão profética para a qual foi levantado;
• A aculturação em face do mundo contemporâneo: o desafio de evangelizar os centros urbanos, nos quais a esmagadora maioria da população mundial se concentra, vem levando pensadores e líderes adventistas a adotar métodos que aproximem o estilo de culto a padrões similares ao da cultura popular contemporânea. Além disso, a influência da quase onipresente mídia social molda os padrões de pensamento dos adventistas dentro de uma perspectiva secular, a qual não é combatida por modelos racionais bíblicos (Rm 12:1-2).
Diante deste quadro, ainda que brevemente esboçado, pode-se perceber os prementes desafios com os quais o adventismo se depara. O movimento que nasceu em meados do século XIX com tantas características peculiares, atravessa seu terceiro século de existência repleto de embates internos e bastante influenciado pela cultura ao redor, quer religiosa, quer secular. O que poderia resgatar dentro do adventismo seus propósitos originais? Obviamente o assunto preocupa líderes e pensadores do movimento. Cada adventista sério se preocupa com a diluição do movimento. O que fazer?
Fonte - Questão de Confiança