Numa cena climática de “Cruzada”, um dos mais erroneamente menosprezados filmes do cineasta britânico Ridley Scott, Balian de Ibelin (Orlando Bloom) faz um discurso para encorajar os moradores de Jerusalém a resistirem ao ataque das tropas muçulmanas que se aproximam dos portões da cidade. Ele afirma que a cidade abriga locais sagrados de muçulmanos, cristãos e judeus, portanto, uma vez que nenhum dos três grupos tem direito de reclamar o controle da cidade, no fundo, todos o têm. Mais tarde, quando negocia a rendição da cidade, Balian ameaça o comandante muçulmano Saladino, brilhantemente interpretado pelo ator sírio Ghassan Massoud: “Você pode tomar Jerusalém”, ele diz. “Mas antes disso, eu irei incendiar a cidade e reduzir a cinzas todos os templos sagrados, cristãos e muçulmanos. Queimarei tudo em Jerusalém que enlouquece os homens”. “Talvez fosse melhor que queimasse”, responde Saladino.
É claro que ninguém em sã consciência seria capaz de propor que alguma cidade fosse deliberadamente incendiada, especialmente uma com a importância de Jerusalém. Mas o encontro entre Balian e Saladino, que data do século XII, soa tão atual quanto as reuniões de paz entre israelenses e palestinos, anunciadas na última sexta-feira, 20. Paralelamente, em Nova York, a discussão sobre a construção da mesquita Cordoba House, a duas quadras do terreno que abrigava o World Trade Center, dividiu cristãos, judeus e muçulmanos.
Barack Obama: “Não somos mais apenas uma nação de cristãos”
Em um discurso de 2006, Barack Obama rebateu a velha máxima de que os Estados Unidos são uma nação cristã. “Não somos mais apenas uma nação de cristãos, mas também uma nação de judeus, muçulmanos, budistas, hindus e ateus”. Obama, hoje presidente do país, apoia a construção da mesquita, alegando que os direitos religiosos dos muçulmanos não podem ser negados. O mesmo argumento foi utilizado pela Liga Anti-Difamação, um grupo dedicado a combater o anti-semitismo, que apesar de reconhecer os direitos dos muçulmanos, tentou convencer os responsáveis a encontrar outra localização menos traumática. Do outro lado, a Organização Sionista da América e o Simon Wiesenthal Center se opuseram à Cordoba House.
Obama também, desta vez num discurso na Universidade do Cairo, em 2009, defendeu a criação de um Estado palestino e criticou tanto o Hamas quanto o governo israelense que expandiu as ocupações no território palestino. Num polêmico discurso, em 2005, o presidente iraniano Mahmoud Ahmadinejad, cujas relações com Israel sempre foram as piores possíveis, disse que os líderes muçulmanos que aceitassem a presença do Estado de Israel estariam se curvando à derrota. É claro que Ahmadinejad – que já negou o Holocausto, e usa toda e qualquer oportunidade para criticar o que chama de “regime sionista maligno” – não faz exatamente o melhor uso das palavras. No entanto, numa tentativa de consertar uma de suas muitas declarações contra Israel, o presidente iraniano tocou num ponto essencial para a compreensão do problema no Oriente Médio: “A perseguição aos judeus aconteceu na Europa, e foi realizada por europeus. Por que os palestinos devem pagar pelos crimes de outros?”.
Quando as primeiras notícias sobre a Cordoba House surgiram, fui favorável à construção da mesquita. Achava, e ainda acho, que um templo muçulmano próximo ao local dos maiores atentados do século ajudaria a mudar a opinião dos norte-americanos sobre o Islã e fazer com que os muçulmanos não fossem vistos apenas como fanáticos terroristas que apedrejam adúlteras, enforcam homossexuais, torturam jornalistas e submetem suas meninas à mutilação genital. Quando vejo pessoas afirmando que tais práticas derivam dos ensinamentos do Alcorão, lembro-as de que há passagens bíblicas que defendem a escravidão e o apedrejamento de crianças. E que interpretações erradas de textos religiosos poderiam sugerir que a ingestão de hóstias representando o corpo de Cristo seria uma apologia ao canibalismo.
É verdade – como bem colocou Franklin Foer, editor da revista The New Republic – que os judeus no passado eram perseguidos por não terem uma terra, e agora são criticados por tê-la. Todos conhecem histórias do feroz anti-semitismo europeu que condenou os judeus a vidas sofridas nos guetos sob a constante ameaça dos pogroms. É verdade também que os palestinos são um povo árabe, maioria absoluta na região. Israel faz fronteira com o Líbano, o Egito, a Jordânia e a Síria, todos países árabes, perfeitamente capazes de abrigar a população dos territórios palestinos. Por outro lado, é verdade também que inúmeros judeus prosperaram vivendo em países nos quais eram a minoria e até hoje convivem na mais perfeita harmonia com povos de todas as religiões em diversas partes do mundo, especialmente em Manhattan. Por que então, num território sagrado para três das maiores religiões do planeta onde judeus finalmente conseguiram ser a maioria, não é possível aplicar a política da boa-vizinhança?
Mesquita nova-iorquina
Foi exatamente a necessidade de uma coexistência pacífica que mudou minha opinião sobre a mesquita nova-iorquina. É claro que os argumentos de que a região não precisava de novos templos muçulmanos, de que a construção da mesquita traria sofrimento aos parentes das vítimas dos atentados, e de que qualquer outro espaço na cidade poderia abrigar o templo são compreensíveis; assim como as dúvidas sobre a origem do dinheiro investido na construção (não faz sentido construir um templo e passar uma mensagem contra o terrorismo se o financiamento vem de países onde não há separação religiosa e política, que aplicam as terríveis leis da sharia).
A responsável por me convencer foi Pamela Geller, representante de uma organização que quer acabar com a islamização dos Estados Unidos. Não me compreendam mal: Pamela é uma fascista, que se apavora com a ideia de conviver ao lado de pessoas de turbantes e véus, uma representante da América retrógrada que luta contra a diversidade e pluralidade que se espalha por seu território. Mas em sua retórica direitista, ela perguntou: “por que não construir também uma igreja no local? Ou uma sinagoga?”. Esse é o grande X da questão.
Seja em Jerusalém ou em Manhattan, judeus e muçulmanos não vão desaparecer. Ocupações opressivas em Ramallah ou explosões em ônibus de Tel-Aviv não farão com que o grupo rival desista de seus objetivos. A história de ambos é marcada por resistência e superação, e nenhum deles será completamente subjugado, o que faria com que o conflito durasse para sempre, algo que não interessa a ninguém. A criação do Estado palestino é um ponto essencial para a pacificação da região, mas o processo exige também que ambos os lados não só renunciem à violência, mas também aprendam a não se enxergar como uma constante ameaça – e o governo israelense pode ter dado o primeiro passo ao incluir o idioma árabe nos currículos escolares.
O mesmo vale para a Cordoba House. Se a ideia da construção é dissociar os muçulmanos dos terroristas da al-Qaeda, que melhor maneira de conseguir isso do que um centro inter-religioso, funcionando de maneira harmônica e mostrando – como afirmou o colunista Lexington, da revista britânica The Economist – que nos Estados Unidos, judeus, muçulmanos e cristãos são antes de tudo, norte-americanos? Seria uma oportunidade única de reafirmar a pluralidade norte-americana criando um espaço onde as três religiões convivam lado a lado em harmonia (algo raro no mundo atual. O único exemplo que me vem à mente é o mercado popular Saara, no Rio de Janeiro).
No filme de Ridley Scott, Tiberias, o personagem de Jeremy Irons, afirma: “Prefiro viver junto aos homens a matá-los”. É claro que anos e anos de desconfiança, rancores e até mesmo ódio não desaparecerão da noite para o dia. Mas já que a solução de Balian e Saladino não é aplicável, talvez essa seja a hora de estender a mão, e tentar ouvir e entender o próximo. O mundo com certeza será bem melhor quando os filhos das três religiões abraâmicas puderem desejar “Shalom”, “Deus te abençoe” e “Salaam Aleikum” a seus irmãos.
Fonte - Opinião e Notícia
Nota DDP: Ao que parece o alinhamento das religiões já é reconhecida a passos largos como uma condição indispensável para a "coexistência" da "raça". Deixa portanto de ser uma questão de testemunho, para ser uma questão mais ampla e com contornos políticos.