quarta-feira, 1 de setembro de 2010

A Igreja de Glenn Beck dos últimos dias

Sábado de manhã, Washington era uma cidade sonâmbula, como se tivesse repentinamente saído para férias. A menos que se fizesse parte do quilómetro e meio de gente que estava a tentar acordar a América, entre um Lincoln de mármore e um obelisco. Glenn Beck, anfitrião de um dos programas televisivos mais populares da conservadora Fox News, fez o chamamento e a América descontente e, sobretudo, zangada com o Governo do país em geral e a Administração Obama em particular, respondeu em massa.

Foi o mais inclassificável comício, se é que isto é um comício: uma combinação de missa campal, festival de patriotismo, revival histórico e show de televisão ao vivo. Outra singularidade: foi um não-comício com a assembleia certa para um comício - conservadores em geral e militantes do Tea Party (movimento que exige menos impostos e que se fortaleceu na luta contra a reforma da saúde de Obama) em particular. Beck apelou para que ninguém trouxesse cartazes, porque não se tratava de um evento político, mas Beck não disse nada sobre T-shirts: "Recessão: quando o seu vizinho perde o emprego. Depressão: quando você perde o emprego. Retoma: quando Obama perder o seu emprego."

Beck sobe ao palco montado em frente do Lincoln Memorial às 10h12, quando muitos tentam ainda encontrar um lugar entre a multidão compacta. Não ajuda que o centro seja ocupado por uma imensa piscina rectangular - fica bem nas fotos, mas neste momento parece apenas imenso espaço inútil. Deus abençoe os ecrãs gigantes, mas é preciso atravessar as árvores e uma barreira humana que veio preparada para um piquenique no parque - cadeiras desdobráveis, geladeiras, coberturas para a relva.

Hello America!

Beck tem os braços abertos.

Está a acontecer uma coisa que ultrapassa a imaginação. Está a acontecer uma coisa que ultrapassa o homem. Hoje a América começa a voltar-se de novo para Deus.

A multidão rejubila.

Beck, que se converteu à Igreja Mórmon em 1999, não explica em que momento a América virou as costas a Deus, nem as causas, talvez porque, como ele diz, prefere "concentrar-se nas coisas boas da América" e não nas "cicatrizes".

Peggy, que viajou 13 horas desde Louisville, Kentucky, para ouvir Beck, diz: "Acho que ele é um tipo brilhante que tem a coragem de dizer coisas que muita gente vai usar para deitá-lo abaixo. A defesa de Cristo não parece ser algo popular no nosso país neste momento. Existe tanta pressão política e sensibilidade em relação a tudo que nos tentam dizer que estatisticamente não somos uma nação cristã, esse tipo de coisas. Mas somos. Está no nosso dinheiro. "In God we trust" [Confiamos em Deus]."

Beck olha para a multidão, extasiado. O tamanho da assembleia é uma vitória pessoal. Refere-se mais do que uma vez às estimativas dos media: 300 mil pessoas, 500 mil pessoas. "E se isso vem dos media, sabe Deus quantos serão." Será que o que vê é o alcance da sua influência? O espelho da sua popularidade? Será que acredita mesmo que foram enviados por Deus, como diz, ou são o produto da intensa autopromoção que tem feito com os seus programas?

Glenn Beck começa a ficar bíblico. Fala de Moisés - "um tipo com um cajado que falou com uma sarça ardente" - e do seu povo eleito e, num salto temporal que tem a subtileza de um cilindro, passa directamente para a fundação da América. O outro povo eleito.

Mas há mais quatro pessoas no palco, uns degraus acima: uma rapariga vestida como a Pocahontas, um índio, um homem com uma kipa e um homem de fato. Beck apresenta-os: descendentes directos dos nativos americanos que foram ter com os primeiros imigrantes aos portos quando estes chegaram. Um rabi. E um pastor descendente dos que chegaram no Mayflower. A versão museológica da diversidade americana. No cenário do seu programa diário na Fox News, Beck tem uma prateleira com objectos que vai retirando ocasionalmente para reforçar o seu discurso. Por exemplo, se estiver a falar de porcelana chinesa, ele mostra um prato de porcelana. É o que estas quatro pessoas estão aqui a fazer. São os objectos.

Não têm tanto orgulho em ser americanos?

Sarah Palin guincha. Depois uma pessoa habitua-se. Histeria. A multidão, obviamente, adora-a.

Pediram-me que viesse aqui falar hoje, não como política, mas como mãe de um soldado.

A última palavra é gritada.

E eu estou orgulhosa dessa distinção. Sabem, podem dizer o que quiserem sobre mim, mas eu gerei um combatente veterano e não me podem tirar isso.

Enquanto discursa, produz estalidos no céu da boca nas pausas. Trrrsssch.

Encontramo-nos hoje aqui, numa encruzilhada simbólica da história da nossa nação. Trrrsssch. E à nossa volta temos monumentos que celebram aqueles que nos têm mantido ao longo dos anos, em palavras ou feitos. Trrrsssch.

A História segundo Beck

Beck apresenta a próxima convidada, "uma mulher que corre risco por estar aqui hoje, por dizer aquilo em que acredita". Alveda King, sobrinha de Martin Luther King. Beck marcou o comício no dia do 47.º aniversário do discurso I have a dream, o que indignou organizações dos direitos civis dos negros, que o acusaram de profanar o legado de King. Desde então, Beck conjurou aproximações a King e à marcha anti-segregação racial de 1963. Anteontem, houve inúmeras referências a King como "um dos gigantes" americanos, e uma parada de diversidade étnica e religiosa em palco para uma assistência quase exclusivamente branca. E Beck referiu que estava hospedado no mesmo hotel de Washington onde King acabou de escrever o seu discurso.

Beck fala regularmente da História no seu programa e venera os "pais fundadores" da América. Ele ascendeu como um protector dos valores e princípios da Declaração da Independência e da Constituição americana, mas a sua ideologia, se é que se pode chamar ideologia, é um patriotismo de conservatório, que funciona por imitação, manco de uma leitura contemporânea. Ele fala desses documentos como de talismãs. Chama-lhes "as nossas escrituras americanas", o que talvez explique esta manifestação indissociavelmente religiosa e patriótica.

Lynn Collett, que veio da Carolina do Sul, segura um cartaz que diz Carolina Patriots. "É um grupo do Tea Party mas não nos consideramos Tea Party. Somos apenas um punhado de pessoas a tentar restituir a Constituição. Acho que é o mesmo que Glenn Beck está a tentar fazer." Gene Geraldo, outro membro do grupo que veio de autocarro, intervém: "A maioria do nosso Governo não acredita na Constituição." Jeff Webster, outro membro: "Penso que foi Obama que disse que a Constituição estava datada." E, olhando em volta, à procura de confirmação: "Não foi o Obama que disse?..."

Alveda King diz que "a América está quase falida". Entre outras razões, porque: a fundação procriadora do casamento está a ser ameaçada e os ventres das nossas mães tornaram-se lugares onde o sangue das nossas crianças é derramado numa guerra de ventres que ameaça o tecido da nossa sociedade.

Alveda diz que o sonho do "tio Martin" só será realizado quando "a oração for novamente permitida nas praças públicas da América e nas nossas escolas".

O último sermão

Mas Glenn Beck voltou para o último sermão - como num concerto de rock, o cabeça de cartaz fica para o fim.

Nós somos uma nação, muito francamente, que está em tão bom estado como eu, e isso não é muito positivo.
Ele desafia as pessoas na assistência para, em casa, rezarem ajoelhadas e com a porta aberta - "para os vossos filhos verem". Pede-lhes para começarem a pagar a dízima às suas igrejas.

Se fizermos estas coisas, havemos de curar a nossa nação.
O discurso dura uma hora ao sol.

A tempestade que se está a aproximar não é só uma tempestade americana. É uma tempestade humana. É uma tempestade global. E quem é que no fim corre para os salvar? São sempre os americanos. Mas ainda não estamos preparados para ser esse povo. Temos de ir para o campo de treino de Deus e reparar as nossas vidas para que possamos ajudar as pessoas no resto do mundo e guiá-las escadas abaixo, para fora do prédio, em segurança.
Moisés-Beck saiu, e ficaram só os cantores de country.

"Ele incorporou mais Deus do que eu estava à espera. Mas por mim tudo bem", diz Gary House, de Virgínia.

Jeff Webster, com o seu sotaque sulista: "Fiquei impressionado com todas as pessoas que vieram para protestar contra o Governo."

Protestar contra o Governo, numa manifestação supostamente não-política?

"Sim, eu acho que lhe pode chamar um protesto."

Christine Wytman, cara vermelha, sete horas e meia de viagem desde Ohio: "Glenn Beck conseguiu solidificar a maioria silenciosa deste país. A Administração não pára de aprovar leis que são muito mais socialistas do que o americano médio deseja." Como a reforma de sistema de saúde. "Vai custar-nos mais do que podemos pagar e vamos ter pior serviço." Christine tem um crachá que diz: "Eu era anti-Obama antes de ser cool!"

Peggy: "Aquilo que mais me surpreendeu quando aqui cheguei foi perceber que não estou sozinha quando sinto que estamos a perder o controlo do nosso país."

"Foi inspirador. Algumas das coisas trouxeram-me lágrimas aos olhos", diz Jeff Webster. "Foi muito pacífico. A única coisa que as pessoas trouxeram foi isto." Saca de uma pequena bandeira americana.

"Repare como tudo ficou limpo. Quando foi a inauguração [de Obama, em 2009], havia lixo por todo o lado."


Fonte - Público 

Nota DDP: É de se observar o que virá no pacote da "volta" da maior nação do mundo a Deus. O segmento religioso ao qual pertence o líder deste evento é partidário da guarda do domingo literalmente, nos moldes do Sábado bíblico.
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