Teria Bento XVI ressuscitado a guerra sectária dentro da igreja católica? O anúncio do Vaticano, de que ele escutou a demanda da ala tradicionalista, que quer liberar a missa em latim de São Pio V reavivou as paixões francesas que "a filha mais velha da igreja", tendo outras preocupações pastorais, esqueceria de bom grado. Mas, Bento XVI dá seqüência a suas idéias. As que ele tem sobre a liturgia são, aliás, bastante quadradas. Ele exigiu rapidez dos bispos franceses, já constrangidos pela notável falta de união, em engajar-se na reforma litúrgica do concílio Vaticano II, que ele nunca apreciou.
Seguindo seus métodos, que lembram a idéia de "dar tempo ao tempo", o papa moveu pacientemente suas peças. Logo que eleito, em abril de 2005, advertiu os cardeais que o elegeram sobre sua intenção de aproximar-se dos tradicionalistas banidos de Roma depois do cisma do monsenhor Marcel Lefebvre, em 1988. Quatro meses mais tarde, em setembro, ele recebeu o sucessor de Lefebvre na direção da fraternidade de São Pio X, o monsenhor Bernard Fellay, para uma audiência em sua residência de verão em Castel Gandolfo. Em outubro de 2006, validou a criação do Instituto do Bom Pastor na diocese de Bordeaux, que acolhe cinco padres dissidentes lefebvristas. Em troca da volta deles, o Vaticano permitiu que realizassem a missa segundo o rito instituído pelo Concílio de Trento no século 16.
Analisando com mais atenção, nota-se que o papa foi rápido em assinar um decreto oficializando a restauração da missa em latim, caída em desuso desde 1969. No fim de dezembro de 2006, tudo indicava que a comissão de cardeais encarregados de preparar o texto daria sinal verde a Bento XVI. Isso apesar das reticências expressas em nome do episcopado francês, que foram apresentadas por seu presidente, o monsenhor Jean-Pierre Ricard, cardeal arcebispo de Bordeaux.
Por que o papa questiona a mais espetacular e emblemática reforma do concílio Vaticano II? Por razões que envolvem doutrina, estratégia e psicologia. Comecemos pela doutrina: o papa é o guardião da unidade da Igreja Católica; ele está, portanto, no exercício de seu sacerdócio quando busca trazer as ovelhas desgarradas do aprisco. Além disso, Bento XVI jamais digeriu bem o cisma de 1988. Então prefeito da Congregação Romana para a Doutrina da Fé, Joseph Ratzinger esforçou-se até o fim para evitar a ruptura. Em vão, pois falhou diante da arrogante determinação do monsenhor Lefebvre.
As razões e os desejos do papa
Para Bento XVI, a missa em latim não deveria ser motivo de dissensão. Em 1998 ele declarou que "o concílio ordenou uma reforma dos livros litúrgicos, sem no entanto proibir o uso dos antigos livros" [1]. A missa de Paulo VI promulgada em 1969 podia inclusive ser feita em latim ou no vernáculo. Mas o uso da primeira, que facilitava a compreensão dos fiéis, logo ganhou enorme vantagem sobre a segunda.
Agora, as razões de ordem estratégica: face à carência de vocações que grassava no clero da Europa Ocidental, as paróquias e os seminários envolvidos com a nebulosa tradicionalista representavam um "filão a trabalhar", para uma igreja que estava com falta de sacerdotes. Além disso, buscava-se atingir uma população (250 mil fiéis no mundo, sendo a metade na França) que, contrariamente à idéia que se faz, era mais jovem que a média dos paroquianos franceses — a forte presença de jovens na peregrinação anual de Pentecostes a Chartres ilustra bem o fato. Esses dados não poderiam escapar a um papa que busca estancar a hemorragia espiritual e intelectual do catolicismo europeu.
No plano tático, liberando o rito em latim, principal reivindicação dos católicos tradicionalistas, o Vaticano espera de uma só vez ser capaz de apaziguar o conflito e tirar proveito das divisões internas entre partidários e opositores da reconciliação com Roma. Enfim, fatores psicológicos ligados à vida e à personalidade do papa Ratzinger explicam suas objeções à reforma litúrgica da concílio. Bento XVI ama as pompas da antiga liturgia que conheceu, ainda criança, na Bavária. O teólogo aberto que ele se mostrou no concílio, em 1968, escandalizalizou-se com a contestação acalorada e até violenta de que foram objeto valores que se presumia "eternos", como a autoridade, a sacralidade e a transmissão das crenças. Desde então, o tema litúrgico tem feito parte de seu arsenal conservador.
Com freqüência, em suas declarações e escritos, Ratzinger detém-se nos "abusos" da liturgia moderna. Esta, queixava-se ele em 1997, "deve tornar-se mais curta; e tudo que julgamos incompreensível deve ser descartado; é preciso que tudo seja dito numa língua mais ’clara’. Mas desse modo, a essência da liturgia e das festas litúrgicas fica fundamentalmente desconhecida. Pois na liturgia, não se compreende somente de maneira racional... mas de um modo complexo, com todos os sentidos, uma festa na qual somos admitidos e que não foi simplesmente invenção de uma comissão qualquer, mas que tem origem nos milênios e, no final das contas, na eternidade" [2]. Que católico tradicionalista não assinaria contente esse vibrante elogio de uma liturgia saída do baú do tempo?
Problema: o tradicionalismo vai muito além da liturgia
O problema subestimado por este papa nostálgico, sedento de cerimônias e aparatos cheios de fausto, é que a crítica tradicionalista não se limita à liturgia. Ela avança também sobre outros grandes princípios solenemente proclamados pelo concílio: a liberdade religiosa, o ecumenismo, o diálogo entre as religiões e uma visão positiva da humanidade. Os opositores de monsenhor Lefebvre rejeitam, muitas vezes com violência, essas opções, que vêem como um sinal da abdicação da fé católica frente à modernidade. O cisma de 1988 foi precipitado pela ira causada, entre os tradicionalistas, pelo encontro inter-religioso para a paz promovido por João Paulo II em 1986, em Assis. Esse evento foi estigmatizado pelos cães de guarda da tradição, transformando essa tradição em máquina de guerra contra a secularização. Mais que a missa em latim, o evento precipitou a consumação da separação e a excomunhão de seus autores.
"A liturgia não é somente uma questão de culto", lembra Patrick Prétot, monge beneditino e professor de liturgia no Instituto Católico de Paris. "Porque ela é a vida de Deus, dada pelo Espírito Santo: ela participa plenamente da missão da Igreja no mundo e no tempo” [3], explica ele. Entendendo-se de outra forma, realizar a missa diante do povo, de acordo com o rito do concílio, ou de costas para o povo, como no rito tridentino, são duas concepções distintas da igreja que se enfrentam. A primeira é pastoral, favorece a participação ativa dos fiéis. A segunda, jurídica, implica submissão dos fiéis a um conjunto de regras e ritos inflexíveis.
A possibilidade de ter dois rituais tão diferentes juntos em suas dioceses não agrada a maioria dos bispos franceses. Eles temem, em suas paróquias, a cacofonia, a pior das dissensões a ameaçar a unidade das igrejas locais. Há oito anos, os dois ritos católicos, o antigo e o novo, são celebrados na paróquia de Santo Eugênio e Santa Cecília, no 9º arrondissement de Paris. Este laboratório do duplo ritualismo tem revelado problemas. O cura tem dificuldade em pacificar as relações entre seus fiéis, e deve ainda suportar as proposições intempestivas de uma minoria de tradicionalistas.
Entre o desastre de Ratisbona e o diálogo na Turquia
Na ocasião da assembléia geral em Lourdes, em novembro de 2006, os bispos reforçaram, numa pouco habitual declaração de apoio a seu presidente, monsenhor Richard, seu compromisso com a missa de Paulo VI. Essa declaração não deve, no entanto, trazer a seus espíritos uma reconciliação fraternal com a ala tradicional. Esses últimos pronunciaram, há não muito tempo, insultos contra o episcopado. Na linha de frente, sempre pronto para a provocação, está Philippe Laguérie, o midiático cura de Saint-Nicolas du Chardonnet, igreja ocupada ilegalmente desde 1977 em Paris. Em setembro de 2006 ele juntou-se ao Instituto do Bom Pastor, prometendo que saberia fazer uso do poder que Roma outorgou de fazer "críticas sérias e construtivas" ao concílio Vaticano II. Tanto espaço é incompreensível para muitos católicos, que falam em tom mais conciliatório. Eles lembram que as críticas do monsenhor Jacques Gaillot ou de movimentos laicos reclamando mais democracia e liberdade na igreja não foram recebidas com a mesma indulgência.
O concílio Vaticano II será comprometido pela decisão de Bento XVI, de restaurar a antiga liturgia? O que o colocaria fundamentalmente em xeque seria a liquidação de seus grandes princípios. Agora, depois do infeliz desastre em Ratisbona [4], Bento XVI aproveitou sua viagem à Turquia para manifestar sua intenção de prosseguir com o diálogo com outras igrejas cristãs e de outras religiões, na linha das orientações do concílio. O impulso de abertura se mantém; mas, segundo uma interpretação restritiva do concílio Vaticano II e uma concepção imóvel da igreja. A reabilitação da missa de sempre, reivindicada com sucesso pelos tradicionalistas, é a demonstração esclarecedora do conservadorismo tranqüilo de Bento XVI.
Tradução: Leonardo Abreu
leonardoaabreu@yahoo.com.br
[1] Discurso de 26 de outubro de 1998 por ocasião do décimo aniversário do motu proporio (decreto) Ecclesia Dei, autorizando o uso do missal anterior ao concílio, com a única reserva de obter o consentimento do bispo do lugar.
[2] Cardeal Ratzinger, O sal da terra, entrevistas com Peter Seewald, Imago, Rio de Janeiro, 1997.
[3] Philippe Bordeyne e Laurent Villemin (dir.), Vatican II e théologie, (O Vaticano II e a teologia, ainda sem tradução para o português), Cerf, Paris, 2006.
[4] Na Universidade de Ratisbona, em 12 de setembro de 2006, o papa usou a histórica controvérsia entre o cristianismo e o islã para explicar como o discurso racional é consubstancial à fé católica. A demonstração causou profundo mal-estar no mundo islâmico.