terça-feira, 12 de dezembro de 2006

Guerra contra o terrorismo ou guerra contra as liberdades?

por Jean Claude Paye [*]

Para medir a amplitude dos ataques que têm sido levados a cabo contra as liberdades em nome da luta antiterrorista, o exemplo da Grã-Bretanha revela-se particularmente interessante. Ela é o país europeu onde o desmantelamento do Estado de direito se encontra no ponto mais avançado, ultrapassando, em muitos casos, as medidas tomadas nos Estados Unidos. Observar o que se passa em Inglaterra permite-nos perceber imediatamente que tipo de reforma é que os governos europeus nos irão propor no futuro próximo.

O governo britânico dispõe de uma capacidade de antecipação relativamente ao que se passa no continente. Essa antecipação é com efeito dupla. Ela existe em relação às medidas tomadas nos outros países europeus, mas também em relação aos atentados em si. O desmantelamento das liberdades públicas e privadas é geralmente justificado como uma resposta aos actos de terrorismo. A Grã-Bretanha apresenta a particularidade de a legislação antiterrorista preceder os atentados aos quais ela é susceptível de responder, produzindo assim uma nova luz sobre a dialéctica que se quis estabelecer entre os atentados e o abandono das nossas liberdades.

Os delitos políticos

A Grã-Bretanha foi o primeiro país a adoptar uma lei antiterrorista da nova geração: the Terrorism Act 2000. Relativamente à antiga legislação, destinada a lutar contra o IRA, a nova lei não tem como objectivo punir determinados grupos ou fracções particulares da população (a base por detrás da organização a combater), mas antes, permite o accionamento de medidas que limitam as liberdades do conjunto dos cidadãos. The Terrorism Act 2000 apresenta um carácter claramente político e cria um delito de intenção. O que define um acto terrorista é que ele é praticado com a intenção de fazer pressão sobre o governo ou sobre determinado corpo administrativo. Nesse sentido, essa lei permite a criminalização de qualquer movimento social. Essa lei serviu de modelo para a decisão-quadro da União Europeia relativamente ao terrorismo. Essa decisão-quadro foi integrada nos códigos penais dos Estados membros.

Em Fevereiro de 2001, sete meses antes dos atentados nos Estados Unidos, o governo de Blair adoptou o the Terrorism Act 2001. Essa lei permite, à semelhança do Patriot Act americano, adoptado imediatamente depois dos acontecimentos de 11 de Setembro, o encarceramento indefinido, sem julgamento nem inculpação, de estrangeiros simplesmente suspeitos de terrorismo. A ausência de provas contra os indivíduos encarcerados, bem como a impossibilidade de os apresentar perante um tribunal, justifica o carácter administrativo da sua detenção. Em Dezembro de 2004, o Tribunal de Apelo da Câmara dos Lordes, a mais alta instância judiciária britânica, emitiu um parecer condenando essa detenção administrativa ilimitada, considerando-a como contrária à Convenção Europeia dos Direitos do Homem. O parecer considerava ainda discriminatória a diferença de tratamento entre nacionais e estrangeiros.

O fim do habeas corpus

O governo considerou que uma boa forma de ter em conta o parecer, era partir para a legitimação da generalização das disposições de excepção ao conjunto da população. The Prevention Terrorism Act, votado em Março de 2005, permite ao ministro do Interior tomar medidas de controlo, conducentes à prisão domiciliária de uma pessoa, sempre que ele suspeite que um indivíduo está "implicado numa acção ligada ao terrorismo". Ele pode também proibir esse indivíduo de utilizar telemóvel, limitar-lhe o acesso à Internet, impedi-lo de contactar com certas pessoas, obrigá-lo a estar em casa a determinadas horas, autorizar a polícia e os serviços secretos a aceder a tudo dentro do seu domicílio. Essas disposições poderão ser tomadas, com base num simples aviso dado pelos serviços secretos, uma vez que não existem provas que permitam levar o assunto para tribunal. O que justifica as medidas tomadas não são elementos objectivos, mas antes, a suspeita de que a pessoa é objecto ou a intenção que lhe é atribuída. O campo de aplicação da lei é bastante alargado, quase ilimitado e totalmente incontrolado. The Prevention of Terrorism Act apresenta-se como não discriminatório, na medida em que diz respeito tanto aos cidadãos britânicos como aos estrangeiros. Essa lei põe fim a um sistema duplo de organização jurídica: Estado de direito para os nacionais e violência pura para os estrangeiros. A supressão do habeas corpus foi generalizada ao conjunto da população. Entra-se assim num estado de excepção generalizada. Essa lei dá ao ministro do Interior prerrogativas de magistrado. Uma pessoa é considerada como terrorista, não através de um julgamento, mas por via de um certificado estabelecido por um representante do poder executivo. Este último não deve, em momento algum, justificar uma decisão que se aplique a simples suspeitos. Em comparação com as outras leis antiterroristas, The Prevention Terrorism Bill confirma a capacidade de antecipação das autoridades britânicas. Essa lei inova ao permitir que se ponha em causa o habeas corpus, não só dos estrangeiros, mas também dos nacionais. Como os presumidos autores dos atentados de Londres, em Julho de 2006, têm nacionalidade britânica, essa nova legislação encontra a sua justificação nas medidas relativas aos atentados que tiveram lugar quatro meses depois da votação da lei.

Um delito de negligência

Em Março de 2006, a Câmara dos Lordes votou uma nova lei antiterrorista, the Terrorism Act 2006, que deu origem às novas infracções de incitação indirecta e de glorificação do terrorismo. A incriminação da incitação indirecta não requer a existência da intenção de levar outras pessoas a cometer actos criminosos. Uma pessoa pode cometer esses delitos sem se dar conta. O delito de incitação indirecta existe se uma pessoa que publica uma declaração tiver sido simplesmente "negligente" quanto à possibilidade de o seu discurso poder ser entendido como encorajador do terrorismo. A pessoa que fala é assim responsável pelo modo como as suas declarações possam ser recebidas, seja qual for o seu objectivo. Também deixou de ser necessária a existência de uma ligação material entre o conteúdo do discurso pronunciado, por exemplo, palavras de apoio à resistência palestiniana, e os actos que essas "incitaram", ou, por exemplo, o alojamento de bombas no metro de Londres. Para se ser perseguido, basta que um tribunal considere que essas palavras criaram um "clima" favorável ao terrorismo. Segundo o governo, a incriminação da "glorificação" visa punir aqueles que "louvam ou celebram" os actos de terrorismo. O poder pretende dar a ideia de que quer, antes de tudo o mais, sancionar os imans radicais, apresentados como "pregadores do ódio". O termo glorificação não está definido.

O fim do político

Essa lei representa um novo passo antecipado na capacidade oferecida ao governo britânico de criminalizar não só toda a acção política, mas também toda a expressão de oposição radical ou de apoio a acções políticas. Ela instaura igualmente uma solidariedade entre poderes constituídos relativamente à sua oposição política, criminalizando todo o acto de resistência armada ou toda a acção de solidariedade material e de apoio verbal ou escrito, relativamente a pessoas que defendem ou defenderam tais actos no passado. Posicionar-se de maneira diferente do governo britânico no que diz respeito a um conflito violento pode tornar-se um delito, em todas as partes do mundo. Quem comete um desses delitos fora do Reino Unido pode ser perseguido por um tribunal britânico. Essa disposição não se refere apenas aos nacionais, mas a toda a pessoa implicada, seja qual for a sua nacionalidade. Assim, the Terrorism Bill 2006 tem um carácter marcadamente imperial. O seu poder de acção é imediatamente global. Ela dá ao poder executivo e aos tribunais britânicos o poder não só de criminalizar qualquer forma de apoio a um movimento social, a uma acção destinada a fazer pressão sobre o governo inglês, mas também o poder de determinar o que é bom e o que é mau em todas as partes do mundo. Essa lei nega a própria essência do político. Já não há conflitos de interesse, mas antes, uma luta mundial do bem contra o mal.

11/Outubro/2006

[*] Sociólogo, autor de "Vers un etat policier en Belgique?", 2000, 160 p., ISBN 782872621804.
Fonte - Multitudes

Ainda sobre a questão do terrorismo e suas implicações, aqui.
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