sexta-feira, 29 de setembro de 2006

A Exactidão do Erro

Os contornos dos eventos finais claramente vêm sendo noticiados pela mídia, sendo esta , na grande maioria das vezes, completamente alheia ao conhecimento do texto bíblico. As impressões do articulista abaixo transcritas e assinaladas, vão de encontro ao estudo mais aprofundado do quadro profético que se afigura cada vez mais próximo.

Publicado na Visão em 28 de Setembro de 2006

Boaventura de Sousa Santos
bsantos@ces.uc.pt

O comentário no Ocidente ao discurso do papa alinhou-se pelas seguintes ideias: não foi um discurso do papa, foi um discurso do professor; talvez o papa tenha cometido um erro ao escolher a citação do Imperador de Bizâncio, mas isso não justifica as violentas reacções no mundo islâmico; o enfoque central do discurso foi a relação entre a razão e a fé, e a crítica do moderno secularismo ocidental.

Por que razão nenhum destes argumentos é convincente? O papa falou como papa e escolheu o contexto que lhe permitisse romper mais claramente com a doutrina papal até agora vigente. Essa doutrina, vinda do Concílio Vaticano II e continuada pelo Papa João Paulo II, era a do ecumenismo e do diálogo entre religiões, no pressuposto de que todas são um caminho para Deus e têm, por isso, de ser tratadas com igual respeito, mesmo que cada uma reclame uma relação privilegiada com a Revelação. O ecumenismo obrigava a considerar como desvios ou adulterações o uso da violência como arma de afirmação religiosa. Esta posição é desde há muito questionada pelo actual papa, para quem a superioridade da religião cristã está na sua capacidade única de compatibilizar a fé e a razão: agir irracionalmente contradiz a natureza de Deus, uma verdade perene que decorre da filiação do Cristianismo na filosofia grega. Ao contrário, no Islão o serviço de Deus está para além da racionalidade. Por isso, a violência islâmica não é um desvio, antes é inerente ao Islão, o que faz do Islamismo uma religião inferior. Esta doutrina está bem documentada na sua condenação dos teólogos mais avançados no diálogo ecuménico, na sua recusa em designar o Islão como uma religião de paz, na sua posição contrária à entrada da Turquia na União Europeia, dada a incompatibilidade essencial entre Islamismo e Cristianismo e ainda na sua convicção de que o Islão é incompatível com a democracia.

É, pois, claro que o papa não cometeu um erro. Foi exacto no modo como formulou a sua provocação. Aliás, se o seu discurso pretendesse ser uma lição de teologia, ela seria de péssima qualidade. Porque não referiu o contexto da conversa entre o imperador e o persa e ocultou o passado beligerante e cruzadista do primeiro? Porque não citou outras opiniões contemporâneas totalmente contrárias à que preferiu? Porque não referiu que em qualquer das religiões abraâmicas há preceitos que podem justificar o recurso à violência, assim tendo sucedido em nome de todas elas? Perante estas interrogações, é necessário analisar o discurso do papa pelos seus reais objectivos políticos. O primeiro e o mais óbvio é o de apor o selo do Vaticano na guerra de Bush contra o Islão e na guerra de civilizações mais vasta que a fundamenta. Tal como João Paulo II alinhara o Vaticano com os EUA na luta contra o comunismo, Bento XVI pretende o mesmo alinhamento, agora na luta contra o Islamismo. Em seu entender, perante o avanço do Islão a resposta tem de ser mais dura, e precisa do poder temporal para se concretizar. Tal como aconteceu com as Cruzadas ou a Inquisição. Trata-se, pois, de uma teologia de vencedores, uma teologia teo-conservadora, paralela à política neoconservadora.

O segundo objectivo é muito mais vasto. Ao defender uma relação privilegiada entre o Cristianismo e a racionalidade grega, o papa visa estabelecer o Cristianismo como a única religião moderna. Só no âmbito dela é possível conceber "actos irracionais" (a perseguição dos judeus, as guerras religiosas, a violenta evangelização dos índios) como desvios ou excepções, por mais recorrentes que sejam. Por outro lado, visa fazer uma crítica radical a um dos pilares da modernidade: o secularismo. O papa questiona a distinção entre o espaço público e o espaço privado, e acha "irracional" que a religião tenha sido relegada para o espaço privado. Dessa "irracionalidade" decorrerão todas as outras que atormentam as sociedades contemporâneas.

Daí a urgência de trazer a mensagem cristã para a vida pública, para a educação e a saúde, para a política e a cultura. O perigo desta crítica do secularismo está em que ela coincide com a posição dos clérigos islâmicos mais extremistas para quem, em vez de modernizar o Islão, há que islamizar a modernidade. Os opostos tocam-se, e não se tocam para dialogarem, senão para se confrontarem. A irracionalidade deste choque reside nas concepções estreitas de racionalidade de que se parte. De um lado, uma racionalidade que transforma a fé numa crença racional ocidental; do outro, uma racionalidade que transforma a razão na manifestação transparente da intensidade da fé islâmica. A luta contra estes extremismos é mais urgente do que nunca, pois sabemos que eles foram no passado os incubadores de guerras e genocídios devastadores. Mas pode o Ocidente lutar contra o extremismo do Oriente do mesmo passo em que reforça o seu?


http://www.ces.uc.pt/opiniao/bss/166.php

Lucas 21:28
Ora, ao começarem estas coisas a suceder, exultai e erguei a vossa cabeça; porque a vossa redenção se aproxima.
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