Dadas as conclusões do articulista - O que o novo papa está pedindo é um diálogo fundamentado na "razão": haverá, sim ou não, germes de violência nos textos sagrados? - imagino que um sim, autoriza in continenti, sejam os islâmicos perseguidos por serem contrários a paz. Ou não?
20/09/2006
Henri Tincq
Terá o novo papa cometido o seu primeiro equívoco? Diante da enxurrada de reações que o seu discurso de Ratisbona, na Alemanha, pronunciado em 12 de setembro - numa palestra intitulada "Fé, Razão e Universidade: Memórias e Reflexões" - por ocasião da sua visita a este país, despertou no mundo muçulmano, as suas declarações deixaram mais de um cristão perplexo. Muitos se perguntam até agora por que ele resolveu pinçar na história do Islã exemplos de contradição entre a fé e a razão, como se estes não existissem na longa série das querelas teológicas internas inerentes ao cristianismo, e que não raro se revelaram cruéis.
Por que será que ele não procurou fazer a faxina em frente à sua própria
porta em vez de ir buscar argumentos na literatura das controvérsias? Por que ter resgatado a polêmica levantada por um tal de Manuel Paleologus, um imperador bizantino do século 14, que proferia diatribes contra o Islã enquanto a ameaça turca estava às portas de Constantinopla? Ou aquela de Ibn Hazm, um autor espanhol do século 11 que condenava toda especulação teológica, mas que nunca fez escola no pensamento islâmico?
Por sua vez, os muçulmanos mostram-se indignados, a justo título, com o fato de o papa ter ido buscar seus elementos de argumentação contra a violência religiosa em contextos históricos assim datados ou em correntes marginais do Islã. Poucos são os que conseguem entender tamanho despautério em meio a um contexto de relações tão conturbadas entre o Islã e o Ocidente.
Bento 16, nascido Joseph Ratzinger, oriundo da grande tradição teológica
alemã (católica e protestante), foi um universitário consumado e brilhante e, durante o reinado de João Paulo 2º, um guardião muito ortodoxo da doutrina romana. Mas será que alguém poderia imaginar que a sua inexperiência política se revelasse tão evidente, e num prazo tão curto depois da sua eleição de abril de 2005 para o trono de Pedro?
Algumas semanas depois da sua ascensão ao topo da Igreja, ele havia
enumerado os nomes dos Estados vítimas do terrorismo, sem citar aquele de Israel, atraindo contra ele vivas críticas por parte de Jerusalém. Em 28 de maio, por ocasião da sua primeira visita na qualidade de papa alemão a Auschwitz, ele havia também atribuído a Shoah às exações de um "grupo de criminosos" nazistas, sem evocar a responsabilidade do povo alemão. E ele havia discursado em memória aos seis milhões de vítimas polonesas da guerra, sem precisar que metade deles eram judeus. Diante da emoção que isso suscitou na comunidade judaica, ele havia corrigido suas declarações.
Mais do que em inexperiência, é em desconfiança que é preciso falar a
respeito deste papa. O seu secretário de Estado, o número dois da Cúria,
encarregado da diplomacia do Vaticano, foi recrutado por decisão própria, contrariamente a todos os costumes da casa, fora do rol dos muitos diplomatas de profissão aptos para esta tarefa. Bento 16 preferiu optar por alguém da sua confiança, escolhendo um outro teólogo próximo a ele, o cardeal Tarcisio Bertone, que fora o seu cúmplice na congregação da doutrina da fé.
Recentemente, Bento 16 explicou a confidentes que ele estava assustado com a incompetência dos núncios apostólicos. Aquele de Washington, por exemplo, nunca havia enviado qualquer relatório para Roma, e muito menos para ele, antes que arrebentasse o escândalo dos padres pedófilos nos Estados Unidos! Mas o papa não pode continuar confiando apenas no seu próprio faro e no seu apreço pela confrontação intelectual. Um diplomata astucioso do seu entourage poderia ter adivinhado a exploração que seria feita nos países muçulmanos das infelizes citações da sua "aula magistral" universitária em Ratisbona.
Bento 16 manifestou o seu "pesar", mas ele não apresentou nenhum pedido de desculpas. Para ele, trata-se de um mal-entendido lamentável. Mas - conforme o ciclo infernal instaurado por toda polêmica -, os países muçulmanos esperam que ele se retrate e se arrependa. Assim como fizera João Paulo 2º que havia manifestado seu "arrependimento" pelos crimes cometidos no passado pela Igreja: o anti-judaísmo das origens cristãs, as Cruzadas, a Inquisição, a guerra contra os protestantes. Mas um tal pedido de desculpas, a ser apresentado assim, "a quente", perante o Islã, seria um fato sem precedente na história da Igreja. Pode-se imaginar as vantagens que extremistas de toda laia tirariam desse "mea culpa" do papa para com os muçulmanos, assim como os riscos de incompreensão radical por parte dos católicos.
Um diálogo fundamentado na "razão"
Aquele foi um erro na forma, sem dúvida. Mas terá sido um erro quanto ao fundo da questão? Do ponto de vista do papa Ratzinger, certamente não. O discurso de Ratisbona não é produto de um acaso. Ele é o fruto de um encaminhamento que lhe é próprio em relação ao diálogo inter-religioso e que não se parece com as vias que haviam sido abertas por João Paulo 2º.
Bento 16 não renega as opções que foram feitas já no concílio Vaticano II (1962-1965) em favor do reconhecimento das outras religiões não cristãs e da abertura de um diálogo com elas. Mas ele sempre preferiu ficar distante dos encontros das religiões em Assis que haviam sido convocados por João Paulo 2º, neles enxergando um risco de sincretismo (fusão de elementos de doutrinas diferentes) e de diluição da identidade católica.
Mal Bento 16 foi eleito papa, ele afastou o responsável das relações com o Islã, um Padre branco, experiente veterano de um diálogo considerado por demais convencional e que não corresponde a um sentimento profundo. Então, em nome de uma concepção mais cultural do que teológica da relação com o Islã, ele fundiu no Vaticano os dois "ministérios", da cultura e do diálogo inter-religioso. Logo depois do caso das caricaturas de Maomé, do assassinato de padres na Turquia e das violentas manifestações anticristãs em alguns países muçulmanos, aquela dupla decisão tivera o valor de um sinal. O diálogo com o Islã seria colocado no contexto de uma maior firmeza.
Portanto, o que o papa quis dizer exatamente em Ratisbona? Que o diálogo devia ser franco. Estava encerrada a fase do diálogo dos bons sentimentos, dos abraços, dos apelos solenes e sedutores, tão repetitivos quanto ineficazes, para a paz das religiões como forma de antecipar a paz do mundo.
O que o novo papa está pedindo é um diálogo fundamentado na "razão": haverá, sim ou não, germes de violência nos textos sagrados? Haverá, sim ou não, no Islã assim como nas outras confissões, instâncias críticas capazes de permitir uma hermenêutica livre - um direito de interpretação - dos textos? Haverá, sim ou não, autoridades magisteriais capazes e livres de enunciar o direito, de denunciar os excessos, de perseguir o fundamentalismo?
Então, sob o pretexto de que está havendo uma islamofobia ambiente, ou de que qualquer declaração corre o risco de ser utilizada em seu proveito por grupos radicais, será mesmo o caso de se calar em relação a essas questões?
Muitos são os muçulmanos moderados, que eles sejam ou não intelectuais, que se perguntam exatamente isso a cada dia que passa, de maneira aberta ou clandestina, por medo de represálias.
Além disso, o Islã deve estar se sentindo muito frágil. Isso porque, diante de cada interpelação externa, de onde quer que ela provenha - seja de um escritor tal como Salman Rushdie, dos caricaturistas dinamarqueses, e hoje do papa -, ele não encontra outro recurso, a não ser aquele da emoção transmitida pelo "Islã conectado a satélites" (os canais Al Jazeera ou Al-Arabiya, hoje o mais influente). Como explicar de outro modo que diante de qualquer contradição o mundo muçulmano não tenha outra forma de resposta a não ser gritar que um insulto foi proferido contra o profeta?
Tradução: Jean-Yves de Neufville
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Fonte - UOL