Assisti recentemente, e sem muita expectativa (atitude que recomendo ao leitor, sob o risco de decepção profunda), ao filme "O som do coração" (do diretor Kirsten Sheridan, EUA: 2007 , distribuído pela Warner Bros. Pictures). A todo instante, a música é retratada na história como entidade externa, a qual o pequeno prodígio Evan (Freddie Highmore) é capaz de "sentir". A música conecta o garoto de 11 anos com seus pais desconhecidos, ambos músicos. O próprio menino desenvolverá rapidamente (e de forma um tanto forçada) suas aptidões musicais.
O filme ajuda a dar uma idéia generalizada, ainda que grosso modo, sobre como a música é concebida na mentalidade de nosso período histórico. Há uma aura mística em torno da Música enquanto arte - por isso, os artistas falam de sua produção como se uma força sobre-natural os arrebatasse, envolvesse suas capacidades e condicionasse o que eles compõem e produzem.
Em "O som do coração", Evan assume o pseudônimo de August Rush (título original da produção) e tenta, como músico de rua, "captar" a vibração que ele ouve, reproduzindo a música recebida através dos ruídos rotineiros de uma cidade grande. Ele não é um artista consciente, mas uma espécie de conduto para materializar a música que chega ao seus ouvidos.
Se a Música, ou qualquer outra expressão artística, é uma força natural, sentida apenas por aqueles que teriam dons especiais, o artista não pode ser responsabilizado por aquilo que produz, moralmente falando. Afinal, de fato ele apenas está expressando algo que não criou. Nesta visão, a Arte não vem de uma deliberação criativa, de um ser-humano que, por ser à imagem de um Deus Criativo, possui a habilidade de criar cultura (o que é a concepção teísta tradicional); pelo contrário, a Arte não é a autonomia da expressão, mas sua impossibilidade. O homem deixa de ser livre para criar e passa a ser um fantoche sob o controle de energias impessoais que o usam.
A produção artística é reflexo dos valores do homem, os quais variam com sua cultura (estando inclusos a nacionalidade, o regionalismo, a educação, a experiência pessoal, a prática religiosa, etc.). A arte não transcende os valores do artista. Com isto, é preciso que se preste um esclarecimento: acredito na influência de seres transcendentes. É possível que estes seres cooperem com o homem e o orientem na forma como produzem a Música e a Arte em geral.
Isso pode se dar em vários níveis. Os salmos, por exemplo, são hinos inspirados, nos quais vemos a destreza de compositores hebreus aliados ao fenômeno bíblico da Inspiração. Os hinários cristãos refletem valores religiosos profundos, sem, contudo, possuir o mesmo nível de contribuição sobrenatural que os salmistas recebiam (ou seja, os hinos podem ser inspiradores, mas não inspirados no sentido técnico, reservado aos profetas que agem sob o comando do Santo Espírito).
Para compositores e artistas (no sentido não pejorativo) cristãos, a Música depende de experiência pessoal com Deus, o que não fica reservado para o momento da produção; o Senhor deve moldar, através de Sua Palavra, a vida do artista, para que, compondo ou fazendo qualquer outra atividade humana, ele viva como um filho de Deus. Sua Arte é fruto dele, em cooperação com a Divindade. Assim fica devolvido o espaço à criatividade do ser feito à imagem de Deus. A música se torna fruto desta criatividade, devendo ser julgada pelo seu valor moral. Não resta mais espaço para aquela Filosofia estranha da Modernidade, mediante a qual a Música (assim como as demais artes) é vista como um tipo de ectoplasma.
Fonte - Questão de Confiança