segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Pelos caminhos de Newman e Blair

Apesar do que ainda afirmam os cronistas e boa parte do bando católico, o cisma de Henrique 8º não foi uma questão de divórcio - para se casar com Ana Bolena - nem um movimento popular, como na Alemanha protestante. Exceto pela doutrina, os reis da Inglaterra foram os chefes efetivos da igreja muito antes que se afirmasse essa posição com um estatuto parlamentar. O princípio foi definido mais tarde como "cuius regio, eius religio" (a religião do rei é a religião do reino), não para retornar ao tribalismo, mas para pôr ordem nos desastres das guerras de religião.

A ruptura anglicana definitiva ocorreu "por um complicado imbróglio de disputas e rancores pessoais, ciúmes, rivalidades de jurisdição, brigas provinciais e simples má intenção" (Paul Johnson). Também contribuíram os desmandos econômicos de muitos clérigos avalizados por Roma, que arruinavam seus fiéis até para enterrar os parentes. A decisão do Parlamento em 1534, promovida por Henrique 8º, concedeu que o rei (e, subordinado a ele, o arcebispo de Canterbury) era sem discussão a cabeça da Igreja da Inglaterra, com todo o poder.

Henrique 8º não pretendia outra coisa senão se livrar do papa ou dobrá-lo, como naquele momento fazia o imperador Carlos 5º da Alemanha (e 1º da Espanha), que tinha o pontífice preso. Londres rompeu com Roma, mas não com a fé católica. Isto é, inaugurou um cisma sem querer implantar a heresia. A Igreja Anglicana nunca se fez protestante em sua vida ou em sua constituição segundo o modelo alemão.

Mas nada é simples quando se trata de religiões. Depois dos anos da sangrenta reação católica de Mary Tudor, que custou a morte na fogueira do próprio arcebispo Crammer, Elizabeth 1ª promoveu um catolicismo reformado, a meio caminho entre os extremos de Roma - e a terrível Inquisição pelo meio - e os exageros de Calvino em Genebra. A suspensão do celibato clerical obrigatório, de que tanto se falou, foi então apenas uma atração manipulada eficazmente pelos reformadores para consumo de muitos sacerdotes (na maioria jovens).

E agora? A aproximação das duas igrejas, romana e anglicana, vem de muito longe. Mas não é ecumenismo no sentido conciliar do termo, senão uma absorção a toda regra, uma volta à casa do pai pela parte de baixo. Roma nunca vai ceder a primogenitura do sumo pontífice, nem a centralidade do Vaticano. Tampouco em sua oposição à ordenação de mulheres (pelo menos por enquanto) ou à entrada de homossexuais no altar sagrado. Isso provoca na prática a subsistência "ad eternum" da Igreja Anglicana como tal, com seu chefe civil (hoje uma rainha) e um arcebispo que a pastoreia.

Há tempo que a Santa Sé renunciou à reunião das igrejas chamadas separadas segundo o pensamento conciliar de João 23 em 1962. Ocorreu quando o cardeal Ratzinger, hoje papa Bento 16, apresentou à assinatura de João Paulo 2º a proclamação de que não há doutrina e igreja verdadeiras além das romanas, nem outro caminho para a salvação das almas (declaração Dominus Iesus, de 2000). Vê-se agora com essa política de assimilação, acolhendo os conversos anglicanos com cautelas e prelaturas, mas humilhando seu cabeça.

A sangria de fiéis do anglicanismo para a igreja romana vem de longe. Quando Tony Blair, o ex-primeiro-ministro britânico, foi em 2007 visitar Bento 16 para divulgar sua conversão ao catolicismo, o líder trabalhista, anglicano de nascimento, levava em sua carteira três retratos do cardeal Newman, o grande convertido. Foi seu presente para Bento 16 porque, como declarou Blair, o mais célebre pregador inglês era o "pensador preferido" do atual papa.

A conversão de John Henry Newman (nascido em Londres em 1821 e morto em Birmingham em 1891) foi um acontecimento mundial na época. Seus escritos e sermões como pastor anglicano não antecipavam sua decisão. Antes havia liderado o Movimento de Oxford, com o empenho de restituir à Igreja Anglicana o direito de se considerar parte da Igreja universal, como a católica e as ortodoxas, sem "romanizá-la", mas devolvendo-a à tradição dos grandes padres e teólogos cristãos. Convertido em 1845, o papa Leão 13 fez Newman cardeal em 1879 e Bento 16 já prepara sua beatificação. Será o primeiro santo católico do Reino Unido procedente do anglicanismo. Um verdadeiro símbolo.

Fonte - UOL


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