Na direita, os amadores jogam Marx no lixo; os profissionais o lêem atentos. Cá está o ex-secretário de Estado norte-americano Harry Kissinger:
Qualquer regime econômico, mas principalmente a economia de mercado, produz vencedores e perdedores. Se a diferença de qualidade de vida entre vencedores e perdedores for muito grande, os perdedores se reúnem e promovem politicamente uma mudança do sistema econômico vigente, dentro do país ou entre os países. Este fenômeno será visto repetidamente em 2009.
Kissinger escreve na edição The World in 2009 da revista britânica The Economist. A edição, que sai todo dezembro e faz previsões a respeito do ano seguinte, está entre minhas leituras favoritas há anos. Além de haver um artigo do presidente Lula nesta versão 2009, o Brasil está citado por toda parte, desde o editorial de abertura. Mas isto fica para outro post. A Kissinger.
O velho diplomata dedica seu artigo a uma interessante análise dos resultados políticos do modelo econômico implantado no mundo desde a queda da União Soviética. Quem estiver à esquerda pode chamar de neo-liberalismo. Kissinger o chama de Consenso de Washington.
Segundo Kissinger, o modelo é falho. Desde que foi adotado internacionalmente, despertou uma série de crises no México, nos Tigres Asiáticos, na Argentina. Ele diz que, nos EUA e na Europa, as crises foram interpretadas como vacilos de quem não se habituou com o sistema. Ninguém entre os ricos imaginou que o problema estivesse no próprio sistema, quanto mais que a crise pudesse se reproduzir em casa.
O pulo do gato para entender a falha, segundo Kissinger, é perceber um descompasso. O sistema econômico mundial foi globalizado. O sistema político, não: continua se baseando no Estado nação. Portanto, quem dita as regras para a economia internacionalizada é cada país individualmente. (Segundo a direita tacanha, internacionalização do poder político é coisa de comunista. Kissinger há de estar a serviço do ouro de Moscou.)
No caso da crise norte-americana, ele a explica da seguinte forma: durante os últimos 15 a 20 anos, tomados por um espírito de grandeza e algumas doses de arrogância, os EUA imaginaram que poderiam gastar o quanto quisessem, financiar quantas aventuras desejassem ao passo que contavam com o constante fluxo de capital vindo do mundo em sua direção. De forma mais simples: gastaram muito pegando dinheiro emprestado. Aí os credores – outras nações – começaram a ter dúvidas a respeito de sua capacidade de pagar. (Kissinger não fala, mas falta de confiança no administrador da Casa Branca contribuiu.) O fluxo parou e a conta chegou.
A economia é global. O poder político sobre os fluxos de recursos, local. Ele continua:
Agora que os pés de barro do sistema econômico foram expostos, o descompasso entre um sistema econômico global e um sistema político baseado no Estado nação precisa ser encarado. A economia precisa se submeter, benefícios trabalhistas devem ser revistos e a dependência em acúmulo de dívida externa deve ser vencida. A esperança é que, neste processo, lições passadas a respeito de abuso do poder do Estado não sejam esquecidas.
(Talvez Kissinger não seja tão comunista assim.)
O debate em 2009, nos EUA, será a respeito de prioridades, finalmente rompendo a antiga discussão entre idealismo e realismo. Restrições econômicas obrigarão o país a definir seus objetivos no mundo em função de uma definição madura de qual é o interesse nacional. [...]
Todo país será obrigado pelo arrocho econômico a rever sua relação com os EUA. Todos – principalmente os credores – vão analisar as decisões que os trouxeram a este ponto. Conforme os EUA diminuem sua área de foco, qual será um sistema de segurança plausível e a que ameaças ele estará voltado? Qual o futuro do capitalismo? Como, nestas circunstâncias, o mundo enfrentará seus grandes problemas, como proliferação nuclear e o aquecimento global?
Os EUA ainda serão o país mais poderoso, mas não terá mais o cargo auto-imposto de tutor do mundo. Conforme o país aprende os limites de sua hegemonia, deve começar a implementar um sistema de consulta internacional que vai além do conceito que sempre adotou. O G8 precisará redefinir seu papel, conforme incorpora China, Índia, Brasil e talvez a África do Sul.
Kissinger não diz, mas não custa esclarecer. George W. Bush deixa, na saída, um país muito menor do que aquele que recebeu ao chegar. Tem menos poder, menos dinheiro, menos influência, menos respeito internacional. Os quesitos menos poder e menos influência viriam, por certo, conforme países outrora pobres crescem e mais e mais gente chega à classe média em todo o mundo. Bush apressou o processo.
Fonte - Pedro Doria Weblog
[Colaboração - Fernando Machado]
Nota DDP: Os pés de barro expostos não são os mesmos da estátua, mas a Pedra vem do mesmo jeito e esmiuçará estes também.