Setembro de 2008 foi um ponto de inflexão no processo recessivo que se iniciara nesse ano nos Estados Unidos: estalou o sistema financeiro e a recessão começou a estender-se rapidamente a nível planetário. Ao mesmo tempo, evidenciavam-se sintomas muito claros de transição global para a depressão e a sua chegada começou a ser admitida em princípios de 2009.
Agora assistimos a um encadeamento internacional de quedas produtivas e financeiras. Ele é acompanhado por uma mistura de pessimismo e impotência diante da provável transformação da onda depressiva em colapso geral, ao mais alto nível das elites dirigentes.
As declarações de George Soros e Paul Volkcker na Universidade de Columbia a 21 de Fevereiro de 2009 assinalaram uma ruptura radical [1] , muito mais séria do que a de Alan Greenspan dois anos atrás quando anunciou a possibilidade de os Estados Unidos entrarem em recessão. Volcker admitiu que esta crise é muito mais grave que a de 1929. Isso significa que a mesma carece de referências na história do capitalismo. O desaparecimento de paralelismos em relação a crises anteriores refere-se também (e principalmente) aos remédios conhecidos. Porque 1929 e a depressão que se seguiu estão associados à utilização com êxito dos instrumentos keynesianos, à intervenção maciça do Estado como salvador supremo do capitalismo. E o que estamos a presenciar agora é a mais completa ineficácia dos Estados dos países centrais para superar a crise. Na realidade, a avalanche de dinheiro que eles lançam sobre os mercados para auxiliar bancos e algumas empresas transnacionais não só não trava o desastre em curso como também está a criar as condições para futuras catástrofes inflacionárias, as próximas bolhas especulativas.
IMPLOSÃO CAPITALISTA?
Soros, por sua vez, confirmou aquilo que já era evidente: o sistema financeiro mundial desintegrou-se, ao que acrescentou a descoberta de semelhanças entre a situação actual e aquela vivida durante o derrube da União Soviética. Quais são esses paralelismos? Como sabemos, o sistema soviético começou a desmoronar-se em fins dos anos 1980 para finalmente implodir em 1991. O fenómeno foi geralmente atribuído à degradação da sua estrutura burocrática o que o tornava em princípio intransferível para o capitalismo que também alberga uma vasta burocracia (ainda que não hegemónica como no caso soviético). Mas existe um processo, uma doença que não é património exclusivo dos regimes burocráticos, que se desenvolveu no capitalismo tal como nas civilizações anteriores à modernidade: trata-se da hipertrofia parasitária, do domínio esmagador de formas sociais parasitárias que depredam as forças produtivas até um ponto tal em que o conjunto do sistema fica paralisado, não pode reproduzir-se mais e finalmente morre afogado no seu próprio apodrecimento.
Ao longo do século XX o capitalismo impulsionou estruturas parasitárias como o militarismo e sobretudo as deformações financeiras que marcaram a sua cultura, seu desenvolvimento tecnológico, seus sistemas de poder. As últimas três décadas assistiram à aceleração do processo — adornado com o discurso da reconversão neoliberal, do reinado absoluto do mercado. Talvez o seu ponto mais alto tenha sido alcançado durante o último lustro do século XX, em plena expansão das bolhas bursáteis e quando o poder militar dos Estados Unidos parecia ser imbatível.
Mas na primeira década do século XXI começou o desmoronamento do sistema. O Império afundou no pântano de duas guerras coloniais, sua economia degradou-se velozmente e bolhas financeiras de todo tipo (imobiliárias, comerciais, de endividamento, etc) povoaram o planeta. O capitalismo financiarizado havia entrado numa fase de expansão vertiginosa esmagando com o seu peso todas as formas económicas e políticas. Em 2008 os Estados centrais (o G7) dispunham de recursos fiscais num montante da ordem de 10 milhões de milhões de dólares contra 600 milhões de milhões em produtos financeiros derivados registados pelo Banco da Basiléia (BIS), ao que é necessário acrescentar outros negócios financeiros. Segundo alguns peritos, actualmente a massa especulativa global supera os 1000 milhões de milhões (cerca de 20 vezes o Produto Bruto Mundial).
Essa montanha financeira não é uma realidade separada, independente da chamada economia real ou produtiva. Foi engendrada pela dinâmica do conjunto do sistema capitalista: pelas necessidades de rentabilidade das empresas transnacionais, pelas necessidades de financiamento dos Estados. Não é uma rede de especuladores autistas lançados numa espécie de auto-desenvolvimento suicida e sim a expressão radicalmente irracional de uma civilização em decadência (tanto a nível produtivo como político, cultural, ambiental, energético, etc). Há mais de quatro década o capitalismo global com eixo nos países centrais suporta uma crise crónica de superprodução, acumulando sobrecapacidade produtiva perante uma procura global que crescia mas cada vez menos. A droga financeira foi a sua tábua de salvação, melhorando lucros e impulsionando o consumo nos países ricos, ainda que a longo prazo tenha envenenado totalmente o sistema.
Foi posto em moda lançar a culpa da crise nos chamados especuladores financeiros. Segundo nos explicam altos dirigentes políticos e peritos mediáticos, as turbulências chegarão ao seu fim quando a "economia real" impuser a sua cultura produtiva submetendo às regras do bom capitalismo as redes financeiras hoje fora de controle. Contudo, em meados da década actual, nos Estados Unidos mais de 40% dos lucros das grandes corporações provinha dos negócios financeiro [2] . Na Europa a situação era semelhante. Na China, no momento do maior auge especulativo (fins de 2007), só a bolha bursátil movia fundos quase equivalentes ao PIB desse país [3] , alimentada por empresários privados e públicos, altos burocratas, profissionais, etc. Não se trata por conseguinte de duas actividades, uma real e outra financeira, claramente diferenciadas, e sim de um só conjunto heterogéneo, real, de negócios. É esse conjunto que agora está a desinchar velozmente, a implodir depois de haver chegado ao seu máximo nível de expansão possível nas condições históricas concretas do mundo actual. Sob a aparência imposta pelos meios globais de comunicação de uma implosão financeira que afecta negativamente o conjunto das actividades económica (algo assim como uma chuva tóxica a atacar as pradarias verdes) surge a realidade do sistema económico global como totalidade a contrair-se de maneira caótica.
SINAIS
As declarações de Soros e Volcker foram efectuadas poucos dias antes de o governo norte-americano ter dado a conhecer os números oficiais definitivos da queda do Produto Interno Bruto no último trimestre de 2008 em relação a igual período de 2007: a primeira estimativa oficial que fixara a referida queda em 3,8% verificou-se ser uma mentira grosseira. Agora verifica-se que a contracção chegou aos 6,2% [4] — isso já não é recessão e sim depressão. O Japão por sua vez teve no mesmo período uma descida do PIB da ordem dos 12% e em Janeiro de 2009 as suas exportações caíram 45% em comparação com o mesmo mês do ano anterior [5] . Na Europa a situação é semelhante ou talvez pior. Após o derrube financeiro da Islândia, a ameaça da bancarrota económica em vários países da Europa do Leste como a Polónia, Hungria, Ucrânia, Letónia, Lituânia, etc, ameaça de maneira directa os sistemas bancários credores da Suíça e da Áustria, que poderiam fundir-se como o da Islândia. Enquanto isso, os grandes países industriais da região, como Alemanha, Inglaterra ou França, vão passando da recessão à depressão. Os prognósticos sobre a China anunciam para 2009 uma redução da sua taxa de crescimento à metade do de 2088. Suas exportações de Janeiro foram 17,5% inferiores às de Janeiro do ano anterior [6] . Esta brusca deterioração do centro vital do seu sistema económico não tem perspectivas de recuperação enquanto durar a depressão global, pelo que o seu ritmo de crescimento geral continuará a descer.
Que Soros e Volcker abram a expectativa de um colapso do sistema económico mundial não significa que o mesmo se produza de modo inevitável. Afinal de contas, uma das principais características de uma decadência civilizacional como a que estamos a presenciar é a existência de uma profunda crise de percepção nas elites dominantes. Contudo, a acumulação de dados económicos negativos e a sua projecção realista para os próximos meses estão a indicar que a grande catástrofe anunciada por eles tem probabilidades de realização muito altas. Para esse desenlace contribuem a impotência comprovada dos supostos "factores de controle" do sistema (governos, bancos centrais, FMI, etc) e a rigidez política do Império. Ao ampliar, por exemplo, a guerra no Afeganistão — preservando assim o poder do Complexo Industrial Militar, gigante parasitário cujos gastos reais actuais (aproximadamente pouco mais de um milhão de milhões de dólares por ano) equivale a 80% do défice fiscal dos Estados Unidos.
A estes sintomas económicos e políticos devemos acrescentar a crise energética e alimentar dela derivada, que certamente voltarão a manifestar-se mal se detenha o processo inflacionário (e talvez antes). Tudo isso num contexto de crise ambiental que passou a ser um factor actual de crise (já não é mais uma ameaça quase intangível localizada num futuro longínquo). E por trás dessas crises parciais encontramos a presença da crise do sistema tecnológico moderno, incapaz de superar – como componente motriz da civilização burguesa – os bloqueios energéticos e ambientais criados pelo seu desenvolvimento depredador.
DESINTEGRAÇÃO, IMPLOSÃO E DISJUNÇÃO
A desintegração-implosão do sistema global não significa a sua transformação num conjunto de subsistemas capitalistas ou blocos regionais com relações mais ou menos fortes entre si, alguns prósperos, outros declinantes (a unipolaridade estado-unidense convertendo-se em multipolaridade, "disjunção" ordenada em torno de novos ou velhos pólos capitalistas). A economia mundial está altamente transnacionalizada, forma um denso emaranhado de negócios produtivos, comerciais e financeiros que penetra profundamente as chamadas "estruturas nacionais", investimentos e dependências comerciais atam-nas de maneira directa ou indirecta aos núcleos decisivos do sistema global.
Em termos gerais, para um país ou uma região, a ruptura dos seus laços globais ou o seu enfraquecimento significativo implica uma enorme ruptura interna, o desaparecimento de sectores económicos decisivos com as consequências sociais e políticas que daí decorrem.
Além disso, até agora o sistema global estava organizado de maneira hierárquica tanto no seu aspecto económico como político-militar (unipolaridade) devido ao fim da Guerra Fria e da transformação dos Estados Unidos no senhor do planeta. Não só no espaço de concentração das decisões comerciais e financeiras (isso já ocorria há mais de seis décadas) como também das grandes decisões políticas.
O afundamento do centro do mundo [7] em meio à depressão económica internacional significa o desencadear de uma cadeia global de crises (económicas, políticas, sociais, etc) de intensidade crescente.
Recentemente Zbigniew Brzezinski pôs de lado as suas tradicionais reflexões sobre política internacional para alertar acerca da possibilidade de agravamento dos conflitos sociais dentro dos Estados Unidos que, segundo ele, poderia derivar em distúrbios violentos generalizados [8] . Por sua vez, e a partir de uma perspectiva ideológica oposta, Michael Klare descreveu o mapa dos protestos populares que atravessa todos os continentes, países ricos e pobres, do Norte e do Sul, iniciados em 2008 como consequência da crise alimentar num amplo leque de países periféricos mas que começam a desenvolver-se globalmente em resposta ao agravamento da depressão económica [9] : a multiplicação de crises de governabilidade aguarda-nos a curto prazo.
A hipótese da implosão capitalista abre o espaço para a reflexão e a acção quanto ao horizonte pós capitalista, onde se misturam velhas e novas ideias, ilusões fracassadas e densas aprendizagens democráticas do século XX, travões conservadores legitimando ensaios neocapitalistas e visões renovadas do mundo a pressionar grandes inovações sociais.
A agonia da modernidade burguesa com os seus perigos de barbárie senil — mas ruptura de bloqueios ideológicos, de estruturas opressivas e de esperança na regeneração humanista das relações sociais.
02/Março/2009
por Jorge Beinstein
Jorge Beinstein é doutor em Ciências Econômicas e professor da Universidade de Buenos Aires. Trabalhou durante muitos anos como consultor de organizações internacionais e lecionou economia internacional na Europa. Autor do livro "Capitalismo Senil", atualmente se dedica ao estudo da crise da globalização.
Notas
(1) "Soros sees no bottom for world financial 'collapse' ", Reuters. Sat Feb 21, 2009. David Randall and Jane Merrick, "Brown flies to meet President Obama for economy crisis talks" , The Independent , Sunday, 22 February 2009.
(2) US Economic Report for the President, 2008.
(3) Em Agosto de 2007 a capitalização das bolsas chinesas superava o valor do Produto Interno Bruto do ano 2006. Dong Zhixin, "China stock market capitalization tops GDP", Chinadaily ( http://www.chinadaily.com.cn/china/2007-08/09/content_6019614.htm )
(4)Cotizalia.com, 27 febrero 2009, "El PIB de EEUUse hunde un 6,2% en el cuarto trimestre".
(5) BBC News, 25-2-2009, "Japan exports drop 45 % to new low".
(6) "China's export down 17.5% in January", Xinhua, 2009-02-11.
(7) Jorge Beinstein, "El hundimiento del centro del mundo. Estados Unidos entre la recesión y el colapso". Rebelión, 8-5-2008 ( http://www.rebelion.org/noticia.php?id=67099 ).
(8) "Brzezinski: 'Hell, There Could Be Even Riots' ", FinkelBlog – 20/02/2009 - brzezinski-hell-there-could-be-even-riots ).
(9, Michael Klare, "A planet at the brink?", Asia Times, 28 de Fevereiro de 2009.
Fonte - Resistir
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