segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Aspectos Inconstitucionais do Acordo Brasil-Santa Sé


A tramitação do tratado internacional entre o Brasil e o Vaticano, que foi assinado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o papa Bento XVI, em 13 de novembro de 2008, reacende as polêmicas sobre o relacionamento entre as potestades temporal e espiritual. O Projeto de Decerto Legislativo 1736/09 – relativo ao tratado – foi recentemente aprovado pela Câmara dos Deputados e depende agora do crivo do Senado Federal para que seja ratificado e, por conseguinte, incorporado ao ordenamento jurídico pátrio.

O Brasil pode, sem embargo, celebrar tratado internacional com a Santa Sé, uma vez que ambos possuem personalidade jurídica de direito internacional, soberania e poder temporal. O tratado, contudo, não pode conceder vantagens exclusivas. De acordo com o internacionalista Valerio de Oliveira Mazzuoli, ao estabelecer privilégios para a Igreja Católica, o tratado deve receber a denominação de concordata e não, simplesmente, acordo.(2) A inconstitucionalidade das concordatas no contexto da democracia constitucional tem sido sustentada por juristas expressivos como Jónatas Machado, J. J. Canotilho, Paolo Barile e o já citado Valerio Mazzuoli. A polêmica atual consiste, portanto, em saber se o documento assinado pelos representantes das Altas Partes Contratantes, Brasil e Santa Sé, é acordo ou concordata, ou, em outras palavras, se o ato bilateral estabelece ou não privilégios inconstitucionais para a Igreja Católica no Brasil. Para a caracterização de concordata não importa se o termo utilizado no documento é acordo. A distinção depende exclusivamente do conteúdo.

O presente artigo tem o propósito de examinar alguns aspectos desse acordo internacional que violam a Constituição brasileira. Será que o novo Estatuto Jurídico da Igreja Católica, avençado pelas Altas Partes Contratantes, atende aos legítimos interesses da Igreja e do Estado? Toda essa problemática é de extrema complexidade, pois envolve aspectos jurídicos, históricos e filosóficos, mas não pode ser ignorada.

Contexto histórico

As tensões e os enfrentamentos entre os poderes político e religioso são antigos. No mundo pré-cristão – essencialmente monista – a política se confundia com a religião.(3) Não se pode deixar de observar que foi o próprio cristianismo que rompeu com esse modelo e estabeleceu o dualismo. Assim, com o advento da doutrina de Jesus Cristo, o poder foi concebido segundo a dualidade temporal (imanente) e espiritual (transcendente)(4). A cultura ocidental seguiu essa orientação que estabelece a separação entre o temporal e o sagrado, mas não foram poucas as contradições e paradoxos ao longo da história.(5)

É importante relembrar que o regime de união entre a Igreja e o Estado, que havia no período imperial brasileiro, sob o amparo da Constituição de 1824, conferia privilégios à Igreja Católica em detrimento das demais confissões religiosas. O status de Igreja oficial do Estado, entretanto, aniquilou a autonomia da Igreja. Assim, Cinfuentes observa que os membros do clero foram, por vezes, reduzidos a meros funcionários estatais enquanto que as atividades das congregações religiosas eram cerceadas. O Estado interferia diretamente nas questões religiosas.(6) Esse quadro pode ser comparado, mutatis mutandis, com a situação atual da Igreja Luterana em países como a Dinamarca e a Noruega. Tais Estados apresentam estreita e comprometedora relação de aliança com a Igreja Oficial. Há liberdade religiosa nesses países, mas a Igreja nacional (Luterana) recebe subsídios e privilégios estatais. Os ministros religiosos são funcionários públicos, o que já compromete a neutralidade (imparcialidade) estatal e, também, a autonomia do religioso frente ao político e vice-versa. Na Dinamarca, 83% da população professa a fé luterana, que é a única fé ensinada nas escolas públicas. Em compensação, a Igreja nacional tem pouquíssima autonomia administrativa. As políticas públicas adotadas na Dinamarca, portanto, não são alheias à moral da Igreja Oficial.(7)

Na esteira do decreto 119-A de 1890, a Constituição brasileira republicana de 1891 consolidou o regime de separação entre a Igreja e o Estado. O vínculo entre a Igreja e o Estado no Brasil foi totalmente extinguido. A Constituição de 1934, todavia, tratou de restaurar, pelo menos em parte, o liame entre a Igreja e o Estado, através da inserção do princípio da colaboração em seu art. 17 e do retorno do ensino religioso nas escolas públicas, art. 112, § 8º. Os debates em torno desse último tema, na Constituinte de 1934, foram acalorados, como registra Scampini.(8)

Embora o preâmbulo da Constituição de 1988 diga “sob a proteção de Deus”, o Brasil ainda é Estado laico por força do art. 19, I. Na mesma esteira desse dispositivo, embora estabeleça o princípio da colaboração, o mesmo dispositivo constitucional proíbe os entes estatais de “estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança”. Tais contradições devem ser harmonizadas pelos interpretes da Constituição. Assim, cumpre ressaltar que a colaboração entre a Igreja e o Estado, prevista no art. 19, I, da Constituição de 1988, está vinculada ao interesse público e não ao interesse religioso institucional ou eclesiástico.

Ensino Religioso

Sobre o ensino religioso, previsto no art. 210, § 1º, Maria Garcia esclarece que a “Constituição está se referindo ao ensino no seu sentido específico de transmissão de conhecimento, informações ou esclarecimentos úteis ou indispensáveis à educação – e não à educação religiosa, propriamente.(9) Assim sendo, o ensino religioso confessional (ou educação religiosa propriamente dita) nas escolas públicas não tem o amparo da Lei Maior. Nem poderia, uma vez que a subvenção dessa educação religiosa confessional é proibida pelo art. 19, I, da CF/1988.(10) Ao subvencionar o “ensino” religioso específico da Igreja Católica, o Estado estaria auxiliando financeiramente essa mesma religião. De acordo com a interpretação de Maria Garcia, cabe ao Estado o ensino religioso e à família e à Igreja, a educação religiosa.(11)

O art. 11, §1º, do acordo propugna pelo ensino católico nas escolas públicas de ensino fundamental. Ora, ao inserir o vocábulo católico, a convenção privilegia essa religião em detrimento das demais, pouco importando a inclusão “e de outras confissões religiosas”. A indefinição dessa última expressão acaba por excluir explicitamente as demais confissões religiosas. Também seria praticamente impossível contemplar toda a diversidade religiosa existente na sociedade.

O artigo sobre o ensino religioso católico do acordo viola, portanto, a Constituição Federal de 1988 e confere privilégio para essa confissão. O Fórum Nacional Permanente do Ensino Religioso (FONAPER) manifestou, em 23 de Agosto de 2009, contrariedade à aprovação do art. 11. O MEC também criticou os termos do Acordo em relação ao ensino religioso.

Direito canônico e matrimônio

O art. 12, §1º, do acordo estabelece que “a homologação das sentenças eclesiásticas em matéria matrimonial” “será efetuada nos termos da legislação brasileira sobre homologação de sentenças estrangeiras”. Assim, o direito canônico em matéria matrimonial, que tinha validade apenas no âmbito interno da Igreja Católica, é incorporado ao direito do Estado Brasileiro. Assim sendo, o Tribunal Eclesiástico passaria a dizer o direito no que diz respeito ao casamento. Destarte, o tratado estabelece, mais uma vez, privilégio à Igreja Católica de dizer o direito.

Destinação de espaços para fins religiosos

Segundo o deputado Regis de Oliveira, o art. 14 do acordo, ao determinar que os municípios reservem espaços em seus territórios para fins religiosos, acaba por promover a interferência nas leis dos municípios.(12)

Privilégios para a CNBB

O art. 18 do acordo distingue a Conferencia Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB com poderes para “celebrar convênios sobre matérias específicas, para implementação do presente acordo”. Ora, convenio é apenas uma das variantes terminológicas na experiência convencional brasileira, como tratado, acordo, ajuste, ato, compromisso, pacto, protocolo etc.(13) Assim, esse dispositivo estaria autorizando a CNBB a celebrar tratados internacionais, com o fim de implementar a convenção vestibular (acordo de 2008). Assim, a Igreja católica é revestida, dentro do território nacional, dos mesmos poderes da Cidade do Vaticano incluindo o poder temporal. Nenhuma outra organização religiosa no Brasil se igualaria à CNBB em poder.

Ademais, o art. 17 do acordo autoriza os Bispos católicos, no exercício de seu ministério pastoral, a pedir vistos às autoridades brasileiras para seus convidados quer sejam sacerdotes, membros de institutos religiosos ou leigos. Como observa Dino Fernandes, há aqui subversão à legislação pátria, uma vez que os pedidos de vistos não poderão ser negados pelas autoridades competentes, restando somente a opção de concedê-los de forma temporária ou permanente.(14)

Conclusão

A possibilidade de colaboração entre a Igreja e o Estado, prevista na Constituição Federal de 1988 (art. 19, I), deve ser interpretada com cautela. A colaboração entre esses dois entes não pode ser generalizada ao ponto de intensificar as alianças entre os poderes temporal e espiritual. O interesse público não deve ser cerceado em detrimento do interesse eclesiástico. O ordenamento jurídico estatal está voltado para a proteção das liberdades individuais da pessoa humana. Proteger a pessoa humana é o maior desafio do século XXI no dizer de Cançado Trindade. A religião recebe proteção do Estado de forma secundária. O Estado assegura a liberdade religiosa porque o ser humano tem o direito de escolha.(15)

O ato assinado em Roma pelas Altas Partes Contratantes apresenta as características de concordata uma vez que privilegia a Igreja Católica e, também, viola a Constituição Federal brasileira em muitos aspectos, como foi demonstrado no presente artigo. Assim sendo, o ato avençado é nitidamente inconstitucional.

A concessão de privilégios sempre ameaçou a autonomia eclesiástica. Assim, a intensificação da aliança entre o Estado e a Igreja por intermédio dessa concordata, se referendada pelo legislativo, pode contrariar, no futuro, os interesses da própria Igreja Católica, restringindo sua autonomia em face do poder estatal.

Fonte - Blog Aldir Guedes Soriano

[Notas de rodapé no link supra]


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